segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A reforma administrativa por vias tortas - Bruno Carazza

Valor Econômico

Decisão do STF de extinguir o regime jurídico único e apoio ao PL dos Supersalários podem gerar efeito contrário ao esperado

Funcionária pública de alto escalão, Maria Candelária tinha uma rotina de trabalho que era uma moleza: entre idas ao dentista, ao café e à modista, só passava na repartição para assinar o ponto e dava no pé. As más línguas diziam que era amante de um político importante, por isso caiu no serviço público de paraquedas, sem concurso.

Também foi sem se submeter a um processo seletivo que Barnabé se tornou servidor. Contratado como temporário (o termo na época era “extranumerário”), não gozava de estabilidade e ainda era mal remunerado, ganhando pouco mais do que o necessário “para o cigarro e o café”.

Maria Candelária e Barnabé são tema e título de marchinhas que fizeram sucesso nos carnavais por satirizar a realidade dos servidores públicos nos anos 1950. Foi buscando dotar o Estado brasileiro de uma burocracia profissional, estável e bem preparada tecnicamente que o governo de Getúlio Vargas criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e depois aprovou um Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, que vigorou até 1990.

Embora importantes para melhorar a qualidade do quadro de servidores, com a institucionalização de algumas carreiras de referência, para as quais o acesso se fazia por concurso, essas medidas não foram capazes de eliminar o aparelhamento político da administração pública, com a indicação de apadrinhados e a contratação precária de trabalhadores que com o passar do tempo se tornavam estáveis.

A Constituição de 1988 representou uma nova tentativa de se garantir um funcionalismo de alto nível e meritocrático, diante dos imperativos de ampliação de direitos individuais e coletivos e de universalização de serviços públicos essenciais como educação, saúde e segurança. Para tanto, o concurso foi estabelecido como forma primordial para acesso à carreira pública, além de se estabelecer um regime jurídico próprio, com direitos e deveres para os servidores.

Desde então, o número de servidores expandiu-se consideravelmente, sobretudo nos Estados e ainda mais nos municípios, que são os grandes provedores do atendimento direto aos cidadãos. Ainda assim, o tamanho do funcionalismo brasileiro, em relação à nossa força de trabalho, é bem menor do que o de países avançados e mesmo em desenvolvimento.

A derrubada do mito do inchaço da máquina pública brasileira é apenas um dos vários méritos do “Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público”, publicado recentemente pela entidade República.org. Elaborado por Vanessa Campagnac, Ana Luiza Pessanha, Paula Frias e Ana Paula Sales, o documento é o mais abrangente panorama sobre a gestão de pessoal no setor público, e traz números (muitos números!) para iluminar os debates atuais sobre cortes de gastos e reforma administrativa.

Premidas pela necessidade de reduzir despesas para manter de pé o arcabouço fiscal, autoridades da área econômica do governo vêm sinalizando a intenção de ressuscitar o PL dos Supersalários para economizar recursos com a folha de pagamentos nos três Poderes e níveis federativos. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal encerrou uma longa pendência jurídica envolvendo um dispositivo da reforma administrativa aprovada por Fernando Henrique Cardoso em 1998 e acabou derrubando o regime jurídico único para a administração direta, reabrindo a possibilidade para a contratação de servidores pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Corrigir distorções remuneratórias e abrir novas possibilidades para arranjos e vínculos trabalhistas no Estado são fundamentais para o equilíbrio fiscal e o melhor atendimento à população. Porém, ao fazê-lo de forma atabalhoada, sem estudos prévios e a escuta de especialistas, por meio de medidas isoladas, corremos o sério risco de alcançarmos o pior dos mundos: não economizar recursos e ainda precarizar o serviço público.

Como demonstra o anuário da República.org, o contingente de pessoas contratadas de forma temporária por União, Estados e municípios cresceu impressionantes 1.760% entre 2003 e 2022. Contratados de forma simplificada e com poucas garantias empregatícias, os temporários representam não apenas um elevado risco jurídico para o Estado como abrem as portas para apadrinhamento político-partidário, descontinuidade na prestação de serviços e até mesmo corrupção.

Além disso, simplesmente aprovar o PL dos Supersalários, além de não gerar o resultado fiscal esperado (como argumentei aqui na coluna de 21/10), pode representar a perda de oportunidade de se corrigir distorções muito mais profundas na estrutura remuneratória estatal.

O trabalho da República.org apresenta evidências contundentes de como, no Brasil, não há equivalência entre o salário de servidores e a complexidade do seu trabalho, de carreiras similares com salários distintos e ainda de uma ausência completa de padronização entre vencimentos de início e de fim de carreira - além do desvirtuamento dos penduricalhos para uma pequena elite de magistrados, membros do Ministério Público, advogados públicos e fiscais, entre outros.

Precisamos urgentemente de uma discussão ampla e bem embasada sobre o Estado que queremos, e não balas de prata e medidas salvadoras que podem piorar o que já temos.

 

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.

Mais um amador disse...

" Porém, ao fazer ( uma reforma administrativa) de forma atabalhoada, sem estudos prévios e a escuta de especialistas, por meio de medidas isoladas, corremos o sério risco de alcançarmos o pior dos mundos: não economizar recursos e ainda precarizar o serviço público. "

Como exemplo de medidas, em princípio, atabalhoadas, só ler " Crônica de um vexame anunciado ", do Estadão, postado hoje neste blog.

😏😏😏

Anônimo disse...

Excelente texto! Estamos diante de um grande cilada.