Folha de S. Paulo
O sabichonismo político tenta nos acalmar
enquanto a democracia pega fogo
Envelheceram mal as apostas de profetas da
democracia risco-zero. Desde 2018, esse
grupo de missionários tenta acalmar a cidadania brasileira sobre riscos à
democracia, entendida como máquina de contagem de votos independente de
qualquer outro atributo que dê a esses votos um lastro genuíno de autogoverno
coletivo e liberdade pública.
Desde avaliação da personalidade de Bolsonaro, tarefa
que a ciência política nunca autorizou politólogo a fazer em nome dela, ou da
afirmação de que "democracia modera", conclusão a que a história
política nunca permitiu chegar em nome dela, ou da sacada de que Moro seria
um "dique" ao presidente, até a máxima da catatonia analítica
"instituições estão funcionando", foram muitas tentativas de
apaziguar o "alarmismo".
Sempre equivocadas, o tempo as transformou em
caricatas. De golpistas na Presidência à tentativa de golpe e plano de
assassinato, os alertas de risco não eram tão extravagantes e
clarividentes assim.
A psicanálise foi mais realista e arguta. O psicanalista Luiz Meyer, na Folha de junho de 2020 ("Por que haverá golpe"), antecipava tentativa de golpe não como dúvida de cientista político mergulhado em planilha de dados, mas como determinação psíquica inexorável. Não tratava do golpe como hipótese, nem tinha a ambição sabichona de cálculo de riscos. Quis apenas explicar por que o ímpeto golpista não era brincadeira:
"Não estamos diante de um bufão
histriônico que bate bumbo na praça de uma pequena cidade do interior. O número
que encena é a expressão da criança intolerante, assombrada pela cadeirinha,
que se apresenta como o redentor que vai borrar todos limites e limitações.
Encurralado por uma mente que serve a criancinha com quem está identificado,
que não aceita nem suporta modalidade alguma de ‘cinto’, ele precisa criar um
mundo em que todas as cadeirinhas sejam destruídas".
O dia 8 de
janeiro de 2023 serve como alerta simbólico sobre muitas
coisas. Primeiro, a fragilidade constitutiva do regime democrático. Mesmo que
se possa explicar por que algumas democracias são mais estáveis e longevas que
outras, não temos ferramentas tão potentes para determinar riscos com precisão.
Porque, em grande medida, são intangíveis.
Segundo, aprendemos outra vez as
consequências de se tratar a delinquência militar brasileira pela via da
covardia e da leniência. Terceiro, demonstra o poder de corrosão cívica da
indústria de desinformação, elevado a patamar desconhecido por tecnologia capaz
de individualizar perfis e customizar a manipulação. E tem gente que acha que
uma rede gerida por algoritmo determinado por plutocrata equivale a praça
pública. E que esse poder corporativo tecnológico agradaria a Adam Smith e
Stuart Mill.
Quarto, a imensa confusão sobre o conceito de
liberdade de expressão, transformada vulgarmente em arma pré-civil de ataque às
precondições sociais da liberdade.
O 8 de janeiro simboliza, finalmente, que o STF tem responsabilidade e oportunidade de corrigir um dos erros constitucionais mais vergonhosos de sua história: o entendimento de que a Lei de Anistia o impede de julgar crimes contra a humanidade. Desde 2011, ação sobre o tema dormita na gaveta de Dias Toffoli (ADPF 153). Flávio Dino começou a enfrentar essa dívida: decidiu que desaparecimento de corpo é crime permanente.
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