quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Ignorar os sinais não vai curar o doente - Nelson Niero

Valor Econômico

Fluxo de notícias ruins só corrobora a percepção de que algo está fora do lugar

Há uma polêmica entre os economistas e curiosos, causada pela recente disparada do dólar e juros, sobre se seria correto dizer que o Brasil está caminhando para uma situação conhecida como “dominância fiscal”. Não é preciso ter um mestrado na “ciência sombria” para saber que se trata de alguma enfermidade econômica importante. Se não dá para cravar que é um caso para a unidade de tratamento intensivo, a percepção que se consolidou nas últimas semanas é que quanto mais tempo levar para começar o tratamento mais graves serão as sequelas.

Os atuais responsáveis pela saúde do país têm, obviamente, outro diagnóstico e reiteradamente tentam provar que está tudo sob controle. O Brasil continua deitado em leito hospitalar esplêndido, mas, vejam, está crescendo - com ajuda de alguns anabolizantes dados pelos sábios doutores, é verdade - e o nível de desemprego é o mais baixo até onde vão os dados.

É preciso, no entanto, estar em estado de negação para ignorar que alguns sinais vitais são preocupantes. Um deles é temperatura cambial, que custa a ceder, apesar das intervenções constantes do Banco Central. Boatos de que a enfermidade teria sido provocada por memes na rede social ou o ataque de algum vírus especulativo foram prontamente negados pelo novo presidente da autarquia responsável pela sanidade monetária do país, Gabriel Galípolo. A causa mais provável é mesmo a velha conhecida crise de confiança.

O agravamento de uma condição que já não parecia boa veio com o anúncio do longamente esperado pacote fiscal, no fim de novembro. O tamanho da decepção foi sentido imediatamente não só no câmbio, mas também na bolsa e nos juros futuros.

A ação do BC para barrar a desvalorização do real em relação ao dólar provocou uma queima de reservas em níveis amazônicos, US$ 33,3 bilhões só em dezembro, a maior redução em um mês na série histórica. Não foi suficiente para evitar a fuga de dólares, já que o último mês do ano registrou o pior fluxo cambial mensal desde 1982, quando o BC começou a registrar esses dados. Sob forte pressão, o real fechou o ano com o pior desempenho entre as moedas globais, seguido de perto pelo rublo russo.

E, no meio desse tiroteio, uma cotação errada no Google traz à cena a Advocacia-Geral da União com uma ameaça totalmente desproporcional de ação judicial que só conseguiu fazer com que o real ficasse de fora desde então da ferramenta de cotação do maior buscador do mundo, algo digno de países exóticos.

Na bolsa, as empresas estão “descontadas” em relação aos indicadores históricos, asseguram os gestores. Falar que a bolsa brasileira está barata já é um lugar-comum que, claro, virou meme (“diz o Barão de Mauá”, é um deles). De fato está, se a régua forem os chamados “fundamentos” das empresas. O problema é que não há fundamento econômico que resista à atual cultura de esbanjamento sem sinal consistente de contenção.

Os juros completam essa trilogia de mau agouro com uma expectativa de taxa Selic de 15% ao fim de 2025, conforme o primeiro boletim Focus do ano. Há apenas um mês, a estimativa era de 13,50%.

Mesmo que alguém na Praça dos Três Poderes resolva proibir a produção de memes no Brasil, as consequências virão, a mais perversa delas a inflação (IPCA de 5% no mesmo boletim Focus). As empresas vão ter que pagar suas dívidas por essa nova “tabela”. O dólar também é um componente importante nos custos, como é o caso dos combustíveis. O aumento da defasagem dos preços praticados pela Petrobras no Brasil na comparação com o mercado internacional aumenta as pressões por reajustes da gasolina e do diesel. Apesar de a fórmula misteriosa que estabelece os parâmetros para essa conversão ter sido “abrasileirada”, nas palavras da presidente da estatal, Magda Chambriard, segurar artificialmente os preços é uma opção arriscada que já custou muito caro para a maior empresa do país.

O fluxo de notícias ruins só corrobora a percepção de que algo está fora do lugar. Déficit das contas públicas em níveis pandêmicos - a dívida bruta subiu 7 pontos percentuais do PIB em dois anos -, estatais com rombos históricos, pedidos de recuperação judicial recordes. Enquanto isso, o governo, com arcabouço esgarçado, divaga sobre criação de impostos para milionários ao mesmo tempo que joga para as calendas medidas para conter seus gastos.

Como destacou este jornal em editorial (23/12/24), é “melancólica” a contabilidade de custos do governo: “Evitar 1 ponto de alta na Selic proporcionaria uma economia quase tão grande quanto a que o tímido pacote fiscal pretende alcançar”. E, lembra, não está inclusa nos cálculos “a privação que a inflação trará aos consumidores de renda mais baixa”. Um ótimo resumo da encrenca fiscal brasileira foi feito por Lu Aiko Otta, repórter especial do Valor em Brasília, na coluna “No rumo da dominância fiscal” (18/12/24). Logo de cara, ela coloca o leitor num mundo aparentemente lúdico de videogame onde relógios e bússolas não funcionam e o jogador é ameaçado por um dragão. Muita gente é jovem demais para lembrar, muita gente fez questão de esquecer, mas esse lugar já foi o Brasil.

 

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