segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Literatura engajada brasileira – Miguel de Almeida

O Globo

Ali pelo final da ditadura militar, as bancas com livros nos corredores das universidades vinham povoadas de Trótski, Lênin e até Rosa Luxemburgo. Ou Karl Liebknecht. Como refresco, havia a redescoberta (para a minha geração) de Oswald de Andrade e a leitura silenciosa de “Poema sujo” de Ferreira Gullar. Apesar da bela sedição de ambos os poetas, havia um ar restrito e nada múltiplo para o pensamento. Mas estávamos numa guerra, e excessos podiam ser tolerados. O compromisso: abater o governo autoritário.

Nos 40 anos da redemocratização, a mais longa convivência do brasileiro com a democracia no período republicano, apesar do fétido 8 de Janeiro, no lugar de Trótski e Lênin, entrou em cena a literatura racial e de gênero de cepa nacional numa imitação calamitosa da esquerda de Nova York.

E preguiçosa: James Baldwin ou Amiri Baraka (nascido LeRoi Jones), dois autores negros de primeira linha, ícones nos inquietos 1960, não produziam títulos de espírito óbvio ou ativista. Por aqui não encontraram eco, onde a geografia ideológica se viu aparentada de algo vizinho ao grupo Panteras Negras.

Não exagero, dou exemplos. O documentário “I am not your negro” é baseado no que seria um roteiro inédito de James Baldwin. Tendo-o como personagem, traz o testemunho do minado ambiente político entre os principais líderes na luta pelos direitos civis — de Martin Luther King a Malcolm X e os Panteras Negras, estes últimos estando à direita no espectro ideológico: armados até os dentes e exímios destruidores de reputação. Ao mesmo tempo, intolerantes à ideia de convívio social com os brancos. Não havia simpatia — o que pode ser visto como reprovação — em relação aos casais mistos.

Pois nos 40 anos da redemocratização, em nome de vocalizada diversidade, as bancadas das livrarias surgem como o microcosmo identitário das discussões pautadas no meio progressista. Pela primeira vez pode-se falar na categoria de literatura racial e de gênero. Sem possuir um senso estético, são produzidos à luz de uma arte tipicamente engajada como ditava sob chicote Andrei Jdanov nos anos stalinistas. Chame de “realismo socialista”.

Negros na literatura brasileira existem desde sempre — de Machado a Castro Alves e Mário de Andrade até Solano Trindade. Como também mulheres — de Francisca Júlia e Maura Lopes Cançado a Lygia Fagundes Telles e Adélia Prado. Todos com uma literatura recheada de exemplos de questões raciais ou feministas. Do poeta negro Cruz e Sousa, “O emparedado”, de 1898:

— E as estranhas paredes hão de subir longas, negras, terríficas.

Cruel. Diz sobre a realidade da acorrentada escravidão.

O ideário ativista da literatura racial e de gênero se apoia no curioso mandamento do lugar de fala; por exemplo, só um autor desfavorecido pode criar um personagem socialmente prejudicado. Apenas um(a) escritor(a) gay possui legitimidade para imaginar um(a) personagem homossexual. Chame de reserva de mercado. Ano passado, o escritor negro Itamar Vieira Junior protestou por um de seus livros ser resenhado (e malfalado) por uma crítica branca. No seu arrazoado, só poderia ser avaliado por um negro. Buscou um compadrio. Os Panteras Negras agradecem. A resenha era ainda tolerante, já que a obra é uma tese, não literatura de ficção.

Por tal luz, Émile Zola não poderia ter escrito “Germinal”, sobre o trabalho nas minas de carvão. Desconheço se algum mineiro teria alcançado a mesma sensibilidade. Herman Melville nunca pescou uma sardinha, mas agradeço diariamente por seu “Moby Dick”. Victor Hugo jamais roubou alguma coisa na feira, mas bastou sua genialidade para transformar “Os miseráveis” numa obra-prima dos desmandos da protoindustrialização. Por conta do talento, não precisariam recorrer à nomeação identitária, do tipo: Fulano, escritor, homossexual e favelado.

Baseadas em obras literárias, o sucesso das produções “Ainda estou aqui” e “Cem anos de solidão”, junto do best-seller “Tudo é rio”, de Carla Madeira, ajuda a desmontar o marketing da literatura engajada dos últimos anos. Todos na lista dos mais vendidos, não trazem em seus enredos os típicos mandamentos da estética preconizada pelo realismo socialista. Os personagens surgem devastados na complexidade comum aos simples mortais; podem ser bons, mas possuem seus defeitos; talvez heróis, mas culpados; atormentados pela finitude da vida, só que por vezes esperançosos. Humanos, enfim. Dá gosto, porque literatura é diferente de tese ou panfleto.

 

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