Folha de S. Paulo
Vigilância cívica defendida pelo presidente
eleito indiretamente em 1985, e que jamais assumiu, voltou à cena sob Bolsonaro
A eleição indireta de Tancredo
Neves para a Presidência da República completa 40 anos na próxima
quarta-feira (15) como uma espécie de lembrete para defensores da democracia. O
apelo do político mineiro para que as forças civilizatórias não se dispersassem
é visto ainda hoje como um discurso atual.
A votação do Colégio Eleitoral que em 1985
escolheu Tancredo para ser o primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura
militar entrou para a história como um marco da redemocratização do
Brasil. Simbolizava a esperança do fim dos anos de chumbo e o triunfo do Estado
democrático de Direito.
Na prática, os caminhos foram mais tortuosos —antes e depois da eleição em que deputados deram 480 votos ao candidato do então PMDB contra Paulo Maluf (PDS), o preferido de 180 dos votantes.
A eleição indireta só ocorreu porque as Diretas Já,
apesar de bem-sucedidas na mobilização nacional com comícios
reunindo artistas e políticos, fracassou no objetivo central de
conquistar eleições diretas.
A Emenda Dante de Oliveira, que previa o retorno do modelo, foi derrotada em
1984 no Congresso.
Solução possível dentro de uma série de
acordos de bastidores entre políticos e militares, a votação indireta não
encerrou a questão. Tancredo foi internado na véspera da posse, em março de
1985 —e morreria em 21 de abril daquele ano, levando José Sarney,
seu vice, a assumir como presidente.
"Sarney cumpriu aquilo que o Tancredo
tinha acordado rumo a uma transição negociada que levaria ao fim da ditadura",
diz Airton Soares, ex-deputado que votou em Tancredo e por isso foi ameaçado de
expulsão por seu partido da época, o PT, que encampou a
bandeira das Diretas e deslegitimava o pleito indireto.
Soares e outros dois petistas que votaram no
mineiro (Bete Mendes e José Eudes), contrariando a orientação de ausência,
acabaram se antecipando à exclusão e deixaram a legenda. "Não me
arrependo. Contribuí para o país de alguma forma com o meu voto", afirma o
ex-parlamentar e advogado.
Daí a dizer que a ditadura foi sepultada de
vez é um exagero, não só na ótica de Soares, mas também de outros personagens e
observadores da situação política brasileira.
"Passamos agora por uma tentativa de
golpe", diz o ex-deputado sobre as
revelações da Polícia Federal sobre a trama no governo Jair
Bolsonaro (PL) para contestar o resultado da eleição de 2022 e impedir
a posse do presidente Lula (PT).
"A instabilidade ainda passa pelos
militares", afirma Soares, para quem "o ímpeto golpista" de
parte do oficialato, neste momento, está sob controle, mas exige atenção
permanente.
No célebre discurso de vitória, ao citar
diferentes contribuições para as etapas de transição democrática, Tancredo
exaltou as Forças Armadas pela "decisão de se manterem alheias ao processo
político, respeitando os seus desdobramentos até a alternativa do poder".
O presidente eleito disse ainda que
"nunca o país dependeu tanto da atividade política" e que a sociedade
brasileira expressou nos comícios das Diretas estar "cansada do
arbítrio". Ele via a necessidade de institucionalização do Estado e da
aprovação de uma Constituição,
o que seria feito em 1988.
"Não vamos nos dispersar. Continuemos
reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a
mesma decisão", conclamou Tancredo, num grito pela união cívica contra o
autoritarismo.
A vigilância democrática voltou a ser
acionada durante o governo Bolsonaro diante do cenário de politização das
Forças Armadas e do risco de ruptura. Cobranças
da sociedade civil foram consideradas um anteparo ao
questionamento das eleições e à ruptura institucional.
A atuação do Pacto
pela Democracia (rede com mais de 200 entidades), da Comissão Arns de
Direitos Humanos, do fórum Direitos Já! e de setores empresariais e políticos,
ao lado de iniciativas como os dois manifestos
pela democracia lidos em agosto na Faculdade de Direito da USP, são citadas
como exemplos dessa mobilização. Representantes dizem que o pior passou, mas
que é
preciso manter o alerta.
O Pacto lançou neste mês, quando os
ataques de 8 de janeiro completaram dois anos, um documento que propõe 38
ações pelo fortalecimento
da agenda democrática, como despolitização das forças de segurança e defesa
do sistema eleitoral.
"Eleição acontece em um dia, mas a
democracia acontece em todos os outros", diz Marina
Slhessarenko Barreto, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do
Cebrap. Para ela, a preservação do regime "depende de um esforço diário
das forças aglutinadas em torno dela".
A cientista política diz que a democracia no
Brasil "passar por maus bocados" não é novidade. "Tanto é
que Tancredo nem
conseguiu assumir e pouco tempo depois, em 1992, tivemos o impeachment
de [Fernando] Collor, dois testes de fogo para o sistema em um intervalo
curto", relembra ela.
Segundo pesquisa
Datafolha feita em dezembro, 69% dos brasileiros preferem a democracia como
forma de governo, taxa abaixo da registrada em outubro de 2022, quando 79%
davam essa resposta, no pico da série histórica iniciada em 1989.
Hoje, 8% consideram que um regime ditatorial
é aceitável sob certas circunstâncias e uma fatia de 52% não vê nenhuma chance
de o Brasil se tornar uma ditadura. O levantamento mostrou ainda que 68%
acreditam que houve risco de golpe após a derrota de Bolsonaro para Lula.
Para Marina, a descoberta do que ela chama de
"arapucas" para que o governo eleito não tomasse posse reforça a
preocupação, já que "a relação do poder civil com os militares permanece
sendo um ponto nevrálgico" e o país enfrentou "quatro anos de
tentativa de destruição" do tecido democrático.
Mas há, sim, razões para comemorar os 40 anos
de democracia, considera a pesquisadora. "Temos que reconhecer os avanços
desde a eleição de Tancredo e celebrar, porque uma democracia nunca vai ser
perfeita. Ela é um processo, é uma construção que nunca termina."
Nenhum comentário:
Postar um comentário