Folha de S. Paulo
Nunca deixei de me surpreender com a
quantidade de clássicos disponíveis em seus pequenos acervos itinerantes
Quem anda pelas ruas do centro do Recife está
acostumado com a ruidosa presença de vendedores ambulantes especializados em
todos os tipos de produto, como relógios, capinhas para celular, garrafinhas
d’água, sombrinhas e guarda-chuvas, brinquedos, frutas, utensílios domésticos,
animais de estimação, itens de papelaria e livros, muitos livros mesmo.
Embora uma parte desses livros fique exposta nos quiosques da praça do Sebo,
localizada entre as avenidas Guararapes e Dantas Barreto, a outra é vendida nas
calçadas do centro afora, onde os livros estão geralmente empilhados uns sobre
os outros, apoiados em caixotes, banquetas e muros ou simplesmente espalhados
pelo chão.
Os livreiros de calçada quase sempre adotam pontos de venda estratégicos,
permanecendo relativamente próximo de um fiteiro ou de uma parada de ônibus um
pouco mais movimentada do que as demais. Um ponto assim costumava existir na
esquina da rua do Hospício com a do Riachuelo, não muito longe da Faculdade
de Direito do Recife e do antigo prédio da Escola de Engenharia onde,
na minha época de graduação, costumávamos renovar as nossas carteirinhas de
estudante.
Já comprei muita coisa boa dos livreiros de
calçada do centro do Recife, incluindo uma tradução para o português de "As Rosas",
de Rainer
Maria Rilke. No entanto, nunca deixei de me surpreender com a quantidade de
clássicos disponíveis em seus pequenos acervos itinerantes: Platão, Maquiavel, Balzac, Marx, Nietzsche, Freud e Sartresão
apenas alguns dos nomes que vemos estampados nas capas de edições já bastante
surradas que esses homens normalmente ostentam como verdadeiros tesouros pelas
ruas da cidade.
Não faço ideia de onde venham esses livros, mas sei que alguns dos seus
vendedores também são apaixonados pela leitura e orgulhosos do trabalho que
desempenham.
Esse é o caso de Oliveiros Souza, cujo ponto fica na Avenida Guararapes.
Em entrevista à jornalista Jeniffer Oliveira, do coletivo de
jornalismo independente Marco Zero, o livreiro de rua com mais de três décadas
de experiência comenta: "Uma coisa que eu admiro é o meu trabalho. Nunca
larguei os livros porque sempre gostei de ler. Já li muita coisa boa, muitos
autores bons [...]. A gente já teve ocasiões de vender muitos livros aqui
anteriormente, sabe? Agora a gente vende mais devagar, mas sempre vende, porque
quem gosta de livro não quer saber de outra coisa".
Verdade. Mesmo com o gradual esvaziamento do centro da cidade, sou testemunha
da atração que esses livreiros ainda exercem nas pessoas que frequentam a
região. A prova disso é eles nunca aparentam estar sozinhos, pois quase sempre
os vejo conversando com alguém sobre as suas próprias leituras que, na grande
maioria das vezes, abarcam uma infinidade de autores, temas e gêneros
literários.
a última segunda-feira (6), quando visitei o
centro com a minha mãe para revermos alguns dos lugares que marcaram a minha
infância e adolescência, como a padaria Imperatriz, avistei um livreiro
trabalhando em plena Conde da Boa Vista sob a implacável vigilância daquele que
tentávamos evitar a todo custo: o sol do meio-dia.
Muito sabidamente, o homem havia distribuído os volumes da sua biblioteca sobre
o chão de uma concorrida calçada sombreada e estreita, dando-nos a sensação de
que seria impossível passarmos por ali sem corrermos o risco de tropeçarmos em
algo de valor.
E, realmente, tínhamos alguma razão de
pensarmos assim. Pois, além de reencontrar um amigo que, vejam só, estava a
caminho do dentista, mas resolveu parar examinar os livros e conversar com o
vendedor, também acabei ganhando de presente uma lindíssima edição de "As
Aventuras do Barão de Münchhausen" com ilustrações de Gustave
Doré.
Deixo aqui, portanto, a minha singela homenagem aos livreiros de calçada do
centro do Recife, que proporcionam momentos como esse quase que diariamente e,
com isso, acabam nos ensinando que os bons livros promovem encontros e
preenchem de vida a nossa busca por conhecimento.
*Escritora, doutora em filosofia e literatura
alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de
Tel Aviv
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