Há 20 anos, numa tarde cinza, o ex-ministro Severo Gomes ia ao helicóptero
em que morreria. Raro industrial de SP contra a tortura, caiu por denunciá-la
"Tinha este dom, o Severo: nele os extremos se tocavam, cessavam os
contrastes. A boêmia e a disciplina. O empenho no que fazia e o à-vontade no
que sabia de graça"
Otto Lara Rezende, em "A sua vida continua", na Folha de 16 de
outubro de 1992
Nesses dias em que a Comissão Nacional da Verdade começa a desvendar os
crimes dos agentes de Estado na ditadura militar, ganham sentido as denúncias
de tortura que Severo Gomes, ministro no governo Geisel, levava corajosamente
ao centro de governo.
Agora que se refazem os rastros do financiamento das equipes de torturadores
pelos grandes industriais paulistas, entre os raríssimos que não contribuíram
estão José Mindlin e Severo Gomes.
Mas os protetores dos algozes jamais irão perdoar Severo, e a sua queda do
ministério se dá justamente no contexto de uma provocação armada por eles.
Liberal num governo autoritário, apoiou a realização na Universidade de
Brasília da reunião de 1976 da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência), uma das gigantescas assembleias pela democracia das quais sempre
participava.
Uma pesquisa sobre história da industrialização em São Paulo, em convênio
com a Unicamp, chega até a mesa do general Geisel, que o chama para explicar o
que o Ministério da Indústria e Comércio tinha a ver com aquilo. Severo
explicou: "Presidente, como estudar a indústria sem tratar da história dos
operários?".
O convênio serviu para consolidar ali o Arquivo de História Social Edgard
Leuenroth, o maior do continente hoje. Dali saiu o belíssimo filme de Lauro
Escorel, "Os Libertários". Lembro-me da projeção do copião no
apartamento de Severo, emocionado.
Severo se inquietava com a situação das prisões no Brasil, 90 mil presos
submetidos à superpopulação e a condições inumanas -hoje são 515 mil detentos,
a quarta maior população carcerária do mundo, depois dos EUA, da China e da
Rússia.
Em 1983, Severo, já na oposição, convoca um grupo de amigos -Fernando
Millan, Hélio Bicudo, José Gregori, Antonio Candido (seu antigo mestre que
admirava) e outros- para visitar o manicômio de Franco da Rocha, onde pacientes
foram massacrados pela polícia militar.
O grupo viria a ser Comissão Teotônio Vilela de direitos humanos, que
comemora agora 29 anos.
Severo, no Senado, dedicou-se aos temas da transição política e do Estado de
Direito. Na Constituinte, foi um dos relatores do artigo 5º da Constituição de
1988, que trata dos direitos individuais.
Ali defendeu os direitos dos afrodescendentes, organizando o primeiro
seminário sobre racismo na história do Senado Federal. Defendeu arduamente os
povos indígenas, junto com a comissão pela criação do Parque Yanomami.
Nos seus discursos clamava pela redistribuição da renda e da riqueza,
denunciando a falta de recursos para enfrentar os problemas sociais.
A cena embaçada em um filme, naquele 12 de outubro, há vinte anos, foi a
última.
Em um fim de tarde cinzenta em Angra dos Reis, Maria Henriqueta, sua mulher,
sobe a escada de um helicóptero, onde já estavam Ulysses Guimarães e sua
mulher, Mora. Antes de entrar, Severo, um lenço amarrado em volta do pescoço,
sorri. A cerimônia dos adeuses foi fugaz. O que nos resta é não esquecer.
Paulo Sérgio Pinheiro, 68, é professor titular de ciência política
aposentado da USP. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo FHC)
Fonte: Folha de S. Paulo
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