- O Estado de S. Paulo / Aliás
O cumprimento de um mandado de condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a um recinto da Polícia Federal, no Aeroporto de Congonhas, para três horas de depoimento nas investigações da Operação Lava Jato, expôs uma novidade histórica, com a qual temos que nos acostumar. As investigações que vêm sendo feitas pela Polícia Federal preenchem requisitos de um processo, que tramita na Justiça Federal, de apuração de uma rede de corrupção política que se instalou no poder por força mesmo dos defeitos de organização do Estado brasileiro. Mas que ganhou traços inéditos no governo do PT. Tanto a corrupção que se investiga quanto a Polícia que faz a investigação e a Justiça que a ordena são também novidades animadoras da reordenação da estrutura do Estado pela Constituição de 1988, contra a qual o PT votou. Aí vemos o cenário de um país governado pelo primado das instituições convencionadas na Assembleia Nacional Constituinte.
Ninguém está isento de ser chamado para depor quando há convicção de que a pessoa intimada possa esclarecer fatos sob investigação. Luiz Inácio, cidadão comum, como qualquer um de nós, não tem prerrogativas de pessoa de exceção que o livrem dos direitos e deveres da cidadania. Nem ele nunca se considerou, até onde sei, acima da lei e do dever nem diferente por direito de nascimento. Ao contrário, Lula tem sido, historicamente, um apóstolo da extensão da igualdade à imensa massa de brasileiros habitualmente tratada como de seres inferiores e de segunda classe.
Desde antes da eleição de Lula, em 2002, ele e o PT adotaram a retórica de considerarem-se vítimas da discriminação e do preconceito das elites, assim definidos todos aqueles que não eram petistas. A retórica vem sendo revigorada nas últimas horas, com grande probabilidade de eficaz repercussão entre os indecisos e vacilantes, aqueles cujo substrato de consciência política se nutre justamente de explicações minimalistas como essa. O argumento se apoia em simplificações religiosas, maniqueístas, como a de um mundo dividido entre Deus e o diabo ou entre os pobres e os ricos. Uma pregação que partidariza sem politizar e sem esclarecer, pois os acusados desse caso são os muito ricos que infestaram o governo petista.
O PT cumpre uma função histórica. É o único partido da história republicana brasileira que estabeleceu um elo entre os humilhados e ofendidos da terra, cronicamente desprezados pela direita e pela esquerda, e o poder. Foi o PT que os transformou em protagonistas do processo político, ainda que pela via torta de um certo messianismo e do clientelismo estatizado do Bolsa Família. Se o PT sucumbir, nenhum outro partido, entre os atuais, tem competência para preencher essa função política. Lula é um político bifronte que tanto se comunica com os sofisticados petistas da USP quanto com rústicos sertanejos dos sertões do Brasil, cujo bilinguismo oculta, sob um português arcaico, estruturas de linguagem e de pensamento remanescentes da língua nheengatu.
Mesmo que a Operação Lava Jato esteja investigando corrupção no exercício do poder político, como é necessário e é de lei, convém levar em conta que a corrupção política é endêmica no Brasil republicano. A questão é compreender como ela alcançou o PT, que surgiu e chegou ao poder em nome da ética na política, mesmo que na falsa suposição de que só ele era ético.
Entre nós, a política republicana fundou-se na trama da troca de favores entre os políticos e o governo e entre os próprios políticos em nome dos interesses oligárquicos das diferentes regiões. Os fatos destes dias indicam que os fundamentos retrógrados da República estão sendo revistos. O que estamos vivendo não é propriamente a crise do PT, mas a crise da negociata como instrumento de governação. O que a Justiça Federal está fazendo, com a Operação Lava Jato, é cobrar a fatura da decência tanto nos negócios privados como na administração pública.
São os arranjos políticos de 2002, para viabilizar a eleição de Lula, que explicam os fundamentos da crise atual. O PT e Lula trataram de demolir as poderosas e invisíveis resistências a que o partido chegasse ao poder. Aderiram ao sistema de trocas de favores entre o público e o privado, que caracteriza o nosso republicanismo. No Nordeste, Lula se dirigiu elogiosamente aos usineiros de cana de açúcar, considerados inimigos por parcela ponderável de um dos grandes grupos de sustentação do partido, o dos trabalhadores rurais. Lula falou aos militares num departamento da Escola Superior de Guerra e fez o elogio da economia da ditadura, justamente a economia que havia penalizado os trabalhadores do ABC, à frente dos quais nascera o líder sindical que ele era. A Carta ao Povo Brasileiro foi o documento que formalizou a profissão de fé do partido como entidade política da conciliação com o grande capital.
No que diz respeito a Lula, é compreensível que tenha sido signatário de um documento como esse. Ele vem do sindicalismo da mesa de negociação, o sindicalismo moderno, radicalmente diferente do sindicalismo de confronto, tão característico das ações sindicais do velho Partido Comunista dos tempos do stalinismo. De modo que o Lula enviado pelos eleitores ao Palácio do Planalto para nos governar era o oposto da figura imaginária de sindicalista que os operários do ABC acreditavam ter eleito. Oposto porque diferente do radical, do homem que enquadraria o capital e o capitalismo em nome dos trabalhadores e dos pobres.
Acabou enquadrado, seu governo infiltrado por agentes dos grandes interesses.
O mesmo ocorreu com os trabalhadores rurais, representados por organizações de mediação, como o MST, nascidas nas pastorais sociais da Igreja Católica e inspiradas em valores do que Edward Thompson definiu como economia moral. Em poucos meses, o governo de Luiz Inácio começou a afastar do governo esses setores, ao mesmo tempo que foi se aproximando do agronegócio, inimigo político dos setores agrícolas populares. Lula não soube aplicar a essa coexistência tensa a mesma habilidade de negociador que desenvolvera em São Bernardo. Aos poucos, a relação dos agrorreformistas com o governo petista foi se deteriorando. Porque representava menos os que ansiavam por reforma agrária e representava mais os interesses do partido, mesmo descartado, o MST continuou fiel ao petismo. Mas o que não ganhou a devida visibilidade é que essa ambivalência do MST escondia o afastamento dos setores católicos em relação ao governo e até mesmo em relação a Lula, isso já em 2005. Não é demais lembrar que, logo após sua posse, Lula foi recebido com aplausos pelos mais de 300 bispos brasileiros na reunião da CNBB, em Itaici, um fato inédito. Por trás sobretudo dos trabalhadores rurais, estava a Igreja e estavam os católicos de base, um dos pilares do petismo. Essa relação de confiança já não existe.
Ao longo dos 13 anos de PT no governo os grupos constitutivos do partido moveram-se em torno de eixos diferentes e desencontrados: o partido perdendo popularidade e o lulismo se robustecendo. Nesses anos era fácil ver a trama do poder se apossando do PT e do próprio Lula. Quando chegou ao poder, Lula e o partido achavam que governar era uma questão de vontade política e que o presidente mandava no poder. Aos poucos descobriu que o poder manda no presidente e que sua margem de conduta autoprotetiva e verdadeiramente governante depende de uma arte que é completamente diversa dos pressupostos do maniqueísmo partidário e da retórica da porta de fábrica.
Em 2005, Luiz Inácio já se dava conta de que ele e seu partido estavam à beira do abismo aberto pelos desencontros e contradições do Estado brasileiro e pelas contradições interiores do próprio Partido dos Trabalhadores. Lula percebeu, mas os petistas não, que a sociedade brasileira, como é normal e corrente, havia mudado desde o dia 1º de janeiro de 2003, dia de sua posse. Percebeu que seu partido se distanciava do Brasil real, o Brasil que muda de modo de ser, de modo de pensar e de modo de votar. Deu uma boa indicação disso quando sugeriu que o PT deveria se aproximar da classe média e da direita e quando, até mesmo, para assegurar a eleição de seu candidato a prefeito de São Paulo, visitou Paulo Maluf em sua casa e apertou sua mão. Muitos não compreenderam que, na linguagem gestual de Lula, apertar a mão é uma coisa e abraçar é bem outra. Nesse enigma há um Lula duplo, que anunciou seu ressurgimento na sexta-feira, do meio das cinzas.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Brasileira de Letras e autor, entre outros livros, de Do PT das lutas sociais ao PT do poder (Contexto, 2016)
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