O provável afastamento da presidente Dilma Rousseff não põe fim à crise política, mas apenas a um de seus importantes capítulos. A economia em frangalhos indica que se esgotou o ciclo no qual todas as despesas cabiam no Orçamento e os impostos subiam para acomodá-las. Não há mais orçamento que baste e os déficits primários se sucedem. Da mesma forma, o atual sistema de representação parece levar o país a flertar com a ingovernabilidade.
Milhões de pessoas assistiram ao vivo e em cores o Congresso em ação em um momento histórico, no domingo, e o espetáculo não teve nada de agradável. Foi chocante a dissonância entre a gravidade do assunto e os discursos dos representantes do povo - foram raras as menções ao objeto da acusação contra a presidente, as pedaladas fiscais. As repetidas saudações dos deputados a seus familiares, além de fora de lugar, sugerem o papel subalterno que o eleitor desempenha no jogo político. Os eleitos consideram até um processo de impeachment como um assunto doméstico, paroquial, onde o que importa é a opinião da família ampliada, parentes e correligionários. A política, a do pior tipo, como ela ainda é praticada nos rincões do país, teve seu dia de (in)glória nacional.
Mais preocupante e reveladora, porém, foi a facilidade com que blocos inteiros de apoio ao governo - partidos como PP, PR e PSD - se moveram com rapidez para abandonar compromissos e postos na máquina dos ministérios que habitavam. A fragmentação partidária é recorde na Câmara ("Folha de S. Paulo", 28 de março) e os centros de gravidade que atraíam a massa crescente de partidos menores, alguns meros balcões de negócios, outros coisa pior, estão em implosão. A negociação com 25 partidos chega perto do inviável e em épocas de enfraquecimento do Executivo beira o caos.
Com a proliferação dos partidos de aluguel, PT e PSDB perderam peso e, igualmente relevante para a negociação política, o "centrão" organizador das demandas e o fiel das votações no Congresso, o PMDB, teve sua força reduzida. Os grandes blocos partidários que davam as cartas no Congresso hoje não dão mais. PSDB, DEM, com apoio do PMDB, que predominaram nos anos FHC, não chegam hoje a 30% da Câmara. O PMDB detinha 53,4% das cadeiras em 1986 e agora tem 13,5%. O PT encolheu pela metade.
A barganha política, no seu pior aspecto, prosperou ao longo dos anos, algo que o escândalo da Petrobras expôs tragicamente - diretorias como a de "furar poços", como dizia o ex-presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, foi entregue a indicados políticos com a missão de subtrair patrimônio público. No seu melhor aspecto, o da formação de alianças em torno de pontos de programa, ela foi por água abaixo. O apoio político tornou-se uma questão direta de compra e venda, como mostram o mensalão e o petrolão. A Lava-Jato provocou um curto circuito nesse esquema.
A reforma política é um jargão surrado, sempre usado e nunca executado. Os interesses alojados no Congresso teriam a perder com ela e não se conhecem congressistas em número suficiente inclinados ao suicídio político. Há dezenas de posições a respeito, e não há interesse em fazê-la de maneira radical. Como toda vez que surge um problema sério no país a primeira reação é a de mudar as leis, é possível aprimorar pontualmente o que já existe, eliminando excrescências. A coalizão partidária em eleições proporcionais é uma delas.
Esse esquema frauda a vontade do eleitor, que escolhe um candidato e seu voto vai para outro, cujas ideias (na hipótese otimista de tê-las) são desconhecidas. Em 2014, só 36 deputados foram eleitos com votos próprios e o resto veio da votação em legenda e coligações. Com 33 partidos existentes, e mais estão a caminho, não é à toa que o eleitor tem dificuldade de se lembrar quem escolheu - o que remete diretamente à dispersão.
Mais que facilitar a expressão política de minorias, a ausência de uma cláusula de barreira tem permitido a entrada de todo tipo de oportunistas e pessoas desonestas atrás de um bom negócio na vida política. No mínimo, partidos que nada representam penduram-se no fundo partidário e tocam a vida.
Ainda que esses dois pontos da reforma sejam razoáveis e urgentes, dificilmente encontrarão quem os acolha. Mas é inexorável que sem essas mudanças, governos, mesmo bem intencionados, dependerão e terão de chafurdar em extensas negociações com parlamentares de baixissima qualidade, às expensas da República.
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