• 'Pedalada' foi feita para mascarar crime contra LDO
- Valor Econômico
É curioso que muitos brasileiros não vejam gravidade nas "pedaladas fiscais" promovidas pelo governo Dilma Rousseff. Haveria uma certa incompreensão justificada pelo fato de o tema ser técnico. Na verdade, não há hermetismo algum. Ademais, as repercussões das "pedaladas" dão a noção exata do mal que esse expediente causou ao país.
A origem do problema está na chamada Nova Matriz Econômica, a tentativa do governo Dilma de substituir o arcabouço macroeconômico com o qual o Brasil convivia desde 1999, para acelerar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Seus ideólogos acreditavam que o crescimento viria se o equilíbrio anterior da economia nacional, caracterizado por juros altos e câmbio apreciado, fosse substituído por seu oposto: juros baixos e câmbio depreciado.
A experiência que inspirou os economistas de Dilma foi a da Turquia, que, ao trilhar esse caminho, aumentou o ritmo de crescimento, mas logo se viu às voltas com inflação galopante e déficit em conta corrente explosivo. Aqui, tentou-se mudar os preços (juros e câmbio) destruindo seu principal fator condicionante: a âncora fiscal.
O fracasso da Nova Matriz é conhecido: em vez de acelerar o PIB, ela retirou tração da economia e, por fim, provocou recessão - talvez, a mais longa da história do país - e depressão. À medida que o experimento fracassava, já em 2012, primeiro ano de sua implantação, o governo se desesperava e inundava a economia de estímulos fiscais para motivar consumo e investimento. Ao fazer isso, destruiu a solidez fiscal conquistada ao longo de quase três décadas de sacrifício (desde a crise da dívida, em 1982). O consumo continuou aquecido por mais algum tempo, mas o investimento desapareceu.
Em 2012, perto da virada do ano, ficou claro que o governo não conseguiria entregar a meta de superávit primário fixada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o que caracterizaria crime de responsabilidade. No apagar das luzes daquele ano, liderados pelo então secretário Arno Augustin, técnicos do Tesouro Nacional promoveram uma verdadeira de troca de chumbo (de ativos) entre bancos e empresas estatais, de forma a gerar artificialmente dividendos que, repassados ao governo central, ajudaram a produzir a meta primária de 2,2% do PIB.
No início de 2013, a imprensa desmascarou a manobra, batizada de "contabilidade criativa". Ao longo daquele ano, novos incentivos tributários foram concedidos, uma vez que o investimento das empresas continuava apático. Novamente movido pelo pânico, o governo tomou uma decisão inacreditável: liberou os Estados e municípios do cumprimento da meta fiscal. A justificativa era a de que esses entes tinham mais condições de investir em obras públicas do que a União. O resultado se viu logo adiante: às vésperas da corrida eleitoral, governadores e prefeitos concederam reajustes salariais generosos ao funcionalismo.
Na prática, o que a equipe de Dilma fez foi destruir um dos pilares da disciplina fiscal adotada no fim dos anos 90. Desde 1997, em decorrência da renegociação e federalização de suas dívidas, Estados e municípios contribuíam anualmente, e de forma estrutural, com cerca de 1% do PIB para o resultado primário das contas públicas. Isto porque, nos contratos de renegociação, ficou acertado que eles comprometeriam pelo menos 13% de sua receita corrente líquida com o pagamento da dívida - o teto era 17%.
Para cumprir a meta de 2013, o governo já não podia lançar mão da desmoralizada contabilidade criativa. Foi ao Congresso, então, para mudar a regra, liberando-se da obrigatoriedade de cobrir a meta de superávit de Estados e municípios, caso estes faltassem com a sua parte. Com todas essas manobras - lembre-se: tudo para, na verdade, não cumprir a meta de superávit primário, que não contabiliza a despesa com juros da dívida -, a arquitetura da destruição da solidez fiscal estava pronta.
Em 2014, com a economia já em recessão e a arrecadação de tributos federais em queda livre, o governo recorreu às "pedaladas". Pedalar, na contabilidade pública, é atrasar pagamentos de despesas obrigatórias e de programas federais para melhorar, artificialmente, o resultado primário das contas do setor público. A manobra é vedada pela Constituição porque, na prática, significa colocar bancos e empresas federais para financiar a União.
Para quem acha que isso não tem importância, é bom lembrar que a prática de financiar gastos públicos por meio de bancos federais (no caso da União) e estaduais foi um dos principais focos da hiperinflação que assolou o Brasil nas décadas de 80 e 90 do século passado. Apenas em 2014, as pedaladas somaram R$ 55,6 bilhões; em 2015, o estoque aumentou para R$ 72,5 bilhões.
Ao pedalar, o governo Dilma procurou mascarar um crime grave, que é o não cumprimento da meta de superávit primário. E por que o descumprimento da meta é algo tão sério? Primeiro, porque a lei orçamentária é a principal de uma democracia - nela, estão inscritas as prioridades de gasto da nação. Ademais, a meta é fixada para forçar uma economia de recursos, destinada a honrar o pagamento dos juros da dívida pública, impedindo que essa continue a crescer ao longo do tempo.
Não é difícil mapear as repercussões sistêmicas das artimanhas fiscais do governo Dilma: elas acabaram com a previsibilidade da economia, aplacando o "espírito animal" dos empresários; a queda vertiginosa dos investimentos diminuiu o crescimento potencial do PIB; sem crescimento, o lucro das empresas, a massa salarial e o salário real entraram em espiral negativa; em consequência disso, o setor de serviços, o que mais emprega, começou a encolher depois de mais de uma década de expansão; a taxa de desemprego explodiu, colocando mais de 10 milhões de trabalhadores na rua; as receitas da União, dos Estados e municípios passaram a cair em termos reais, ameaçando o funcionamento da máquina estatal e, portanto, o pagamento dos salários dos servidores e a manutenção de serviços essenciais, tais como educação e saúde; atoladas em dívidas, muitas empresas entraram em recuperação judicial e outras estão renegociando suas dívidas para não dar calote.
As medidas anunciadas ontem pelo governo para enfrentar a calamidade das finanças públicas mostram que o buraco é grande e que, portanto, a nação só sairá dele com muito sacrifício. Os pessimistas preveem que o conserto consumirá uma geração - a crise da dívida só foi superada em quase três. Enquanto muitos ainda acreditarem que "pedalar" é uma bobagem, a crise continuará a se aprofundar porque essa será a opinião de amplos setores de seus representantes no Congresso, a quem cabe a palavra final sobre as reformas estruturais propostas.
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