Na sexta-feira passada, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, anunciou que o Ministério Público deverá ter uma forte atuação na aplicação da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) nas próximas eleições. A orientação da Procuradoria-Geral da República (PGR), anunciada depois de uma reunião com os procuradores regionais eleitorais, é para que o órgão ingresse com ação de impugnação contra todas as candidaturas que desrespeitarem as inelegibilidades previstas em lei.
Trata-se de uma boa iniciativa, que está em sintonia com as atribuições do Ministério Público, a quem compete a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. A lei deve ser sempre respeitada, muito especialmente no processo eleitoral. Seria um gravíssimo desleixo com a ordem jurídica deixar que o processo eleitoral seja vilipendiado por quem não tem o direito, por ser ficha-suja, de se candidatar.
Raquel Dodge, que é também procuradora-geral eleitoral, informou que o Ministério Público irá cobrar o ressarcimento dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Campanha usados por candidatos com inelegibilidade reconhecida pela Justiça Eleitoral. “O Ministério Público Federal pedirá o ressarcimento aos cofres públicos de financiamento a candidatura inelegível. Se houver a confirmação, todo centavo público que financiou uma campanha será ressarcido”, disse a procuradora-geral. O cálculo desses valores incluirá os gastos públicos relativos ao horário eleitoral gratuito de rádio e de televisão dedicado ao candidato inelegível.
Na ocasião, a procuradora-geral eleitoral também assinou uma instrução normativa a respeito da interpretação de um dos artigos da Lei da Ficha Limpa. Entre as causas de inelegibilidade, a lei estabelece, no art. 1.º, I, l, que “são inelegíveis para qualquer cargo os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena”.
Segundo Raquel Dodge, para configurar a inelegibilidade, o decreto condenatório de suspensão de direitos políticos por ato doloso de improbidade administrativa não precisa necessariamente mencionar a existência de lesão ao patrimônio público e de enriquecimento ilícito. Bastaria aludir a um dos dois efeitos: a lesão ao patrimônio ou o enriquecimento ilícito.
Com esses atos, Raquel Dodge nada mais faz do que cumprir o Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), que estabelece, entre as atribuições do procurador-geral eleitoral, o dever de zelar pela fiel observância das leis eleitorais. A lei também diz que compete ao procurador-geral eleitoral “expedir instruções aos órgãos do Ministério Público”.
É de reconhecer que, mesmo com plena validade legal, esses atos da procuradora-geral têm reduzida eficácia prática. Tal disfunção é resultado da interpretação que se consolidou segundo a qual cada membro do Ministério Público dispõe da chamada “autonomia funcional”. Cada procurador seria absolutamente livre para interpretar a lei como bem entende, sem nenhuma submissão hierárquica. Assim, a rigor, ninguém seria obrigado a seguir a nova instrução normativa.
Como forma de assegurar o cumprimento das funções institucionais do Ministério Público, tornando-o imune a eventuais pressões do Poder Executivo, a Constituição de 1988 previu que “são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”. No entanto, o que era prerrogativa da instituição se tornou, por interpretação indevida, direito individual de cada integrante do Ministério Público. A rigor, essa interpretação inviabiliza uma atuação do Ministério Público coerente com sua finalidade institucional, pois como será possível a defesa da ordem jurídica e do regime democrático se cada procurador promove com o seu trabalho uma aplicação não uniforme da lei?
Nenhum comentário:
Postar um comentário