Folha de S. Paulo
Faltam criatividade e ousadia para reformar
o accountability do órgão (e do Judiciário)
Há muito lavajatismo no antilavajatismo.
Destoam no alvo. Um
quer sanitizar a política pela Justiça, livrá-la do pecado e substituí-la
por "testes de integridade". Uma gincana para credenciar pessoas de
bem, com Deltan de bedel. O outro quer debilitar a Justiça pela baixa política,
desossar meios de investigação, intimidar e varrer vestígios de autonomia.
São movimentos de desinstitucionalização
com sinal trocado. De mãos dadas, enfraquecem instituições constitucionais.
Sobram mandonismo, personalismo e orçamentos secretos. Arthur
Lira e Gilmar Mendes desfilam na Esplanada de mestre-sala e
porta-bandeira ao samba do centrão político e magistocrático.
Antilavajatismo, aqui, não se confunde com qualquer crítica à Lava Jato. Refere-se a um tipo de reação à Lava Jato, à moda brasiliense. Lavajatismo também não se confunde com combate à corrupção. Evoca estilo populista, sectário e antijurídico de se forjar luta contra a corrupção via corrupção institucional e agressão a direitos. Ao gosto curitibano.
Imaginam-se em quadrantes opostos, num jogo de soma zero. No universo binário, o crachá de combate à corrupção pertence só ao lavajatista. E "triunfo do Estado de Direito", só ao antilavajatista. Moro e Aras encarnam um e outro. Gilmar, autor dos atos mais lavajatistas e antilavajatistas da história, encarna os dois lados, a depender de quando e para quem. Legalidade à parte.
A Lava Jato promoveu abuso interinstitucional,
um concerto entre Judiciário e Ministério Público. Causou danos individuais e
coletivos. Foi novidade porque chacoalhou os sistemas político e econômico, não
só prendeu ladrão de miojo. Distribuiu arbitrariedade sem distinção de classe,
apenas de partido. Fez do sistema de Justiça uma "instituição com
causa" e o desnaturou.
Essa orquestra do vandalismo engravatado se
explica pela fúria antipolítica que grassou o país, mas também pela grave
leniência e cumplicidade de instâncias de controle funcional e de mérito. STF,
CNJ, TRF-4 e corregedoria abraçaram Moro. CNMP, CSMPF e corregedoria se
renderam a Deltan. Falharam pessoas entorpecidas no freestyle messiânico; e
falharam instituições, cujos buracos regulatórios facilitaram a cruzada sem
lei.
Uma arquitetura mais bem desenhada
resistiria ao charme dos cruzados curitibanos e à cólera do pato da Fiesp?
Talvez não. Mas perguntas contrafactuais ajudam o pensamento e sugerem reformas
que atenuem o risco de novo descalabro.
A PEC 5 compartilha da premissa e
tenta reforma
profunda no Ministério Público. Com base em diagnóstico de senso comum,
porém, erra no foco. Aprofunda erros, ignora problemas.
Chama atenção, para começar, pelo que não
faz: nada diz sobre ouvidorias, participação social em conselhos, mecanismos de
transparência, seleções internas, sujeição de procuradores-gerais a prestação
de contas e mitigação de seu poder irrecorrível de arquivamento. E nada diz
sobre Judiciário.
Mas assusta pelo que faz. Primeiro, aumenta
cadeiras de indicação congressual ao CNMP. O javanês do cinismo político
costuma chamar de "vaga da cidadania". Valeria fazer balanço de quem
foram e o que fizeram as indicações congressuais em mais de 15 anos de CNJ e
CNMP. Exemplo recente foi a nomeação ao CNJ, com antecipação estratégica, de
filho do ministro Napoleão Maia, do STJ. Investiguem o xadrez magistocrático
por trás. Não é bonito.
Segundo, faz da posição central de
corregedor-geral, com amplos poderes monocráticos, um cargo de indicação
congressual.
Terceiro, e mais grave, dá ao CNMP poderes
que interferem na atividade-fim do Ministério Público. A redação foi
atenuada em recente substitutivo, mas a ambiguidade permanece. Ainda permite
que medidas extrajudiciais em defesa do meio ambiente, de indígenas ou da
saúde, por exemplo, sejam invalidadas por coalizão política sob pressão do
poder econômico.
Permanece uma proposta muito aquém da
criatividade dos debates constituintes e reformistas pós-88 sobre sistema de
Justiça, que culminaram na emenda constitucional 45, de 2004. Muito aquém das
contribuições do PT, que à época não confundia indicação do fisiologismo
congressual com "vaga da cidadania" ou participação da sociedade.
Criatividade e ousadia murcharam.
A PEC
5 está para o furor antilavajatista como as "10 medidas contra
corrupção" estavam para a presunção lavajatista. Uma confusão entre meios
e fins: ferramentas não guardam relação com o propósito anunciado. O ônus
reformista pede menos impressionismo e mais diagnóstico.
James Madison, o Oscar Niemeyer do desenho
institucional, diria que facções estão vencendo. Com esse pastiche, a Lava Jato
de amanhã pode ser maior.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
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