quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Conrado Hübner Mendes* - Ministério Público precisa ser controlado, não anulado

Folha de S. Paulo

Faltam criatividade e ousadia para reformar o accountability do órgão (e do Judiciário)

Há muito lavajatismo no antilavajatismo. Destoam no alvo. Um quer sanitizar a política pela Justiça, livrá-la do pecado e substituí-la por "testes de integridade". Uma gincana para credenciar pessoas de bem, com Deltan de bedel. O outro quer debilitar a Justiça pela baixa política, desossar meios de investigação, intimidar e varrer vestígios de autonomia.

São movimentos de desinstitucionalização com sinal trocado. De mãos dadas, enfraquecem instituições constitucionais. Sobram mandonismo, personalismo e orçamentos secretos. Arthur Lira e Gilmar Mendes desfilam na Esplanada de mestre-sala e porta-bandeira ao samba do centrão político e magistocrático.

Antilavajatismo, aqui, não se confunde com qualquer crítica à Lava Jato. Refere-se a um tipo de reação à Lava Jato, à moda brasiliense. Lavajatismo também não se confunde com combate à corrupção. Evoca estilo populista, sectário e antijurídico de se forjar luta contra a corrupção via corrupção institucional e agressão a direitos. Ao gosto curitibano.

Imaginam-se em quadrantes opostos, num jogo de soma zero. No universo binário, o crachá de combate à corrupção pertence só ao lavajatista. E "triunfo do Estado de Direito", só ao antilavajatista. Moro e Aras encarnam um e outro. Gilmar, autor dos atos mais lavajatistas e antilavajatistas da história, encarna os dois lados, a depender de quando e para quem. Legalidade à parte.

A Lava Jato promoveu abuso interinstitucional, um concerto entre Judiciário e Ministério Público. Causou danos individuais e coletivos. Foi novidade porque chacoalhou os sistemas político e econômico, não só prendeu ladrão de miojo. Distribuiu arbitrariedade sem distinção de classe, apenas de partido. Fez do sistema de Justiça uma "instituição com causa" e o desnaturou.

Essa orquestra do vandalismo engravatado se explica pela fúria antipolítica que grassou o país, mas também pela grave leniência e cumplicidade de instâncias de controle funcional e de mérito. STF, CNJ, TRF-4 e corregedoria abraçaram Moro. CNMP, CSMPF e corregedoria se renderam a Deltan. Falharam pessoas entorpecidas no freestyle messiânico; e falharam instituições, cujos buracos regulatórios facilitaram a cruzada sem lei.

Uma arquitetura mais bem desenhada resistiria ao charme dos cruzados curitibanos e à cólera do pato da Fiesp? Talvez não. Mas perguntas contrafactuais ajudam o pensamento e sugerem reformas que atenuem o risco de novo descalabro.

A PEC 5 compartilha da premissa e tenta reforma profunda no Ministério Público. Com base em diagnóstico de senso comum, porém, erra no foco. Aprofunda erros, ignora problemas.

Chama atenção, para começar, pelo que não faz: nada diz sobre ouvidorias, participação social em conselhos, mecanismos de transparência, seleções internas, sujeição de procuradores-gerais a prestação de contas e mitigação de seu poder irrecorrível de arquivamento. E nada diz sobre Judiciário.

Mas assusta pelo que faz. Primeiro, aumenta cadeiras de indicação congressual ao CNMP. O javanês do cinismo político costuma chamar de "vaga da cidadania". Valeria fazer balanço de quem foram e o que fizeram as indicações congressuais em mais de 15 anos de CNJ e CNMP. Exemplo recente foi a nomeação ao CNJ, com antecipação estratégica, de filho do ministro Napoleão Maia, do STJ. Investiguem o xadrez magistocrático por trás. Não é bonito.

Segundo, faz da posição central de corregedor-geral, com amplos poderes monocráticos, um cargo de indicação congressual.

Terceiro, e mais grave, dá ao CNMP poderes que interferem na atividade-fim do Ministério Público. A redação foi atenuada em recente substitutivo, mas a ambiguidade permanece. Ainda permite que medidas extrajudiciais em defesa do meio ambiente, de indígenas ou da saúde, por exemplo, sejam invalidadas por coalizão política sob pressão do poder econômico.

Permanece uma proposta muito aquém da criatividade dos debates constituintes e reformistas pós-88 sobre sistema de Justiça, que culminaram na emenda constitucional 45, de 2004. Muito aquém das contribuições do PT, que à época não confundia indicação do fisiologismo congressual com "vaga da cidadania" ou participação da sociedade. Criatividade e ousadia murcharam.

PEC 5 está para o furor antilavajatista como as "10 medidas contra corrupção" estavam para a presunção lavajatista. Uma confusão entre meios e fins: ferramentas não guardam relação com o propósito anunciado. O ônus reformista pede menos impressionismo e mais diagnóstico.

James Madison, o Oscar Niemeyer do desenho institucional, diria que facções estão vencendo. Com esse pastiche, a Lava Jato de amanhã pode ser maior.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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