EDITORIAIS
Populismo à custa dos pobres
O Estado de S. Paulo
Tentativas de flexibilizar teto de gastos tornaram-se rotineiras sob Bolsonaro
Os pobres pagarão a conta – e será pesada –
se o presidente Bolsonaro levar adiante sua nova jogada populista, agravar a
crise fiscal e produzir mais inflação. Bandeira de sua campanha eleitoral
permanente, o programa Auxílio Brasil, versão turbinada do Bolsa Família, é
mais um risco para a saúde já muito precária das finanças oficiais. Sem cuidar
de como cobrir os gastos e de como conter a dívida pública, ele determinou a
elevação da ajuda para R$ 400 e sua extensão a mais beneficiários. Desses R$
400, R$ 100 deverão ficar fora das normas fiscais. O resultado será mais uma
violação do teto de gastos, disfarçada, se possível, por mais uma exceção à
regra constitucional.
Os gastos sociais seriam financiáveis se
fossem cortadas outras despesas, como as escandalosas emendas parlamentares
abençoadas pelo presidente, mas nenhuma solução desse tipo foi decidida. Numa
longa reunião, a equipe econômica mostrou os efeitos do aumento improvisado e
voluntarista do Bolsa Família. “Eu assumo os riscos”, disse o presidente,
segundo apurou o Estado.
O presidente chegou a adiar o anúncio do
novo programa diante da resistência na equipe econômica, mas afinal o programa
foi anunciado ontem, com os problemas de sempre. Para o relator do Auxílio
Brasil na Câmara, deputado Marcelo Aro (PP-MG), Bolsonaro “não está dando um
presente, ele está emprestando até ganhar a eleição”. O ministro da Cidadania,
João Roma, prometeu um programa com responsabilidade fiscal, mas faltou
explicar como se ajustará o Orçamento.
Bolsonaro sempre agiu como se a Presidência
fosse apenas sinônimo de poder de mando, sem vinculação com a ideia de
administração e de responsabilidade fiscal – e sempre que o mercado se dá conta
disso, como quando ficou claro o espírito demagógico do novo auxílio, a Bolsa
despenca e o dólar sobe.
Ações em queda, dólar em alta e custos maiores para o Tesouro têm refletido a insegurança do mercado quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública. Essa dívida, na vizinhança de 90% do PIB, é bem maior que a média, pouco superior a 60%, encontrada nas economias emergentes e de renda média.
Mas a reação do mercado é muito diferente
daquela acessível à maior parte das pessoas. Investidores e outros agentes da
área financeira buscam proteção alterando suas aplicações e, em muitos casos,
mandando recursos ao exterior. Nada parecido pode ser feito pela maioria dos
cidadãos.
Sem meios para se defender, esses
brasileiros são os mais afetados pelos desarranjos da produção, pelo desemprego
e pela inflação decorrentes dos erros e desmandos do poder federal.
Supostamente beneficiários de medidas populistas, os pobres são os mais
prejudicados, quando políticas desse tipo resultam em desastres para a
economia.
No Brasil, a inflação está na casa dos 10%
ao ano, e só é superada. O desajuste é especialmente doloroso por causa do
encarecimento de itens como alimentação, eletricidade e gás. Somado ao
desemprego, o desastre inflacionário produz miséria e fome.
A nova jogada populista – mais uma no
currículo de um presidente capaz do mais ostensivo populismo e do mais
descarado desprezo à vida dos concidadãos – será, se consumada, mais um golpe
contra as finanças públicas. Parte das despesas com os programas sociais ficará
provavelmente fora do teto de gastos, assim como parte dos pagamentos de
precatórios.
O Executivo e seus aliados no Congresso
tentam agora aprovar limites para esses pagamentos, embora se trate de
compromissos já em atraso e com liquidação determinada pela Justiça. Na
prática, os credores dos precatórios sofrerão um calote disfarçado.
Criado como norma constitucional no governo
de Michel Temer, o teto de gastos, mecanismo necessário para enfrentar o
descalabro da passagem de Dilma Rousseff pela Presidência, deveria reforçar a
responsabilidade fiscal, limitando o aumento nominal da despesa à inflação do
exercício anterior. Essa norma durou pouco e as tentativas de “flexibilizar” o
teto por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada
“gestão” Bolsonaro – que, a se manter assim, nada ficará a dever à de Dilma.
As faces de uma tragédia
O Estado de S. Paulo
Relatório da CPI da Covid detalhou as
minúcias de um complô para assegurar sustentação política de Bolsonaro à custa
da dor dos brasileiros
Após seis meses de trabalho, a CPI da Covid
concluiu bem sua missão de sistematizar as evidências de que o presidente Jair
Bolsonaro, com seu comportamento irresponsável, ofensivo e desdenhoso, transformou
o que naturalmente seria uma grave crise sanitária na pior tragédia do Brasil
republicano.
Sem desmerecer o trabalho dos senadores, à
CPI não restava muito mais afazer doque reuniras provas que foram produzidas
aos borbotões diante dos olhos estupefatos do País, além de aprofundar
investigações pontuais e tipificar as condutas dos agentes. As ações e omissões
de Bolsonaro e de todos os que a ele se associaram nessa desdita já eram de
conhecimento público, em grande medida graças ao trabalho da imprensa livre e
independente.
Ontem, o senador Renan Calheiros (MDB-AL),
relator da CPI da Covid, leu o resumo do relatório final. Ao longo das mais de
1.100 páginas do relatório, cuja primeira versão o Estado havia revelado no
domingo passado, o relator detalhou as minúcias do que pode ser claramente
classificado como um complô para garantir subsistência político-eleitoral ao
presidente da República durante a pandemia de covid19 à custa do bem-estar, da
saúde e da vida de centenas de milhares de brasileiros. No momento em que
Calheiros lia seu relatório, o País contava oficialmente quase 604 mil mortes
causadas pelo coronavírus. Seguramente, muitas teriam sido evitadas caso as
vacinas tivessem chegado mais rápido aos brasileiros.
Segundo o relator, Bolsonaro, assessorado
por um “gabinete paralelo” formado por médicos, políticos e empresários sem
cargos no governo federal, decidiu expor o maior número possível de pessoas ao
coronavírus afim de produzira chamada imunidade coletiva, negligenciando até
onde foi possível a compradas vacinas. O objetivo do presidente era forçara
retomada prematura das atividades econômicas e, assim, evitar reveses políticos
em sua campanha pela reeleição.
Na visão da CPI, desse cruel desígnio
original derivaram todas as demais práticas criminosas que a comissão apurou.
Ao todo, o relator propõe o indiciamento de 66 pessoas, incluindo Bolsonaro,
seus três filhos com mandato eletivo e seis ministros e ex-ministros de Estado,
além de políticos, empresários e servidores públicos que, conforme o relatório,
tentaram obter ganhos pessoais à custa do sofrimento dos brasileiros. As
acusações incluem crimes como epidemia, corrupção, organização criminosa,
charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, usurpação de função pública e
crimes contra a humanidade, entre outros.
As faces das 66 pessoas que o relator
propõe que sejam indiciadas pela CPI da Covid são bastante conhecidas e a
temeridade de suas condutas restou cabalmente demonstrada pela comissão de
inquérito. Masa CPI d aC ovidfo ialé me acertou ao dar voz a quem perdeu pais,
mães, filhos, avós e amigos em decorrência dacov id -19. Essaéa verdadeira face
da tragédia que Bolsonaro insiste em minimizar.
Ad ordos cidadãos ouvidos pela CPI da Covid
dá concretude aos crimes cometidos por Bolsonaro na condução do País durante a
pandemia. Os rostos do taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, da
enfermeira Mayra Pires Lima, da estudante Giovanna Gomes Mendes da Silva, entre
outros que lá estiveram, são a expressão de um país enlutado e indignado com o
desrespeito e o descaso com que foi tratado por quem deveria ser o primeiro a
zelar por seu bem-estar neste momento dramático.
Bolsonaro aposta na impunidade. Fia-seno compadrio ena leniência das instituições, sobretudo da Procuradoria-geral da República, para sair incólume da tragédia, a despeito do mal que causou ao País. Mas não pode ser assim. “Se ele tivesse ideia do mal que faz para a Nação, ele não faria isso”, disse à CPI a testemunha Kátia Castilho, que perdeu o pai e a mãe para a covid-19. “Não são só números, são pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências, e nós queremos justiça .” É oque o Brasil decente exige.
CPI acerta ao cortar exageros do relatório
final
O Globo
Foi providencial a reunião de terça-feira,
na casa do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), para aparar arestas no relatório
final da CPI da Covid. Depurou-se o documento de exageros evidentes, como
atribuir ao presidente Jair Bolsonaro os crimes de genocídio de indígenas e
homicídio qualificado (ambos insustentáveis) e ao deputado Flávio Bolsonaro a
acusação de favorecer a Precisa Medicamentos. Mais vale um relatório menos
impactante que produza resultado do que um espalhafatoso sem chances de vingar.
Mesmo com os cortes, o documento, lido
ontem pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL), é histórico em sua amplitude e
ambição. Pela primeira vez uma CPI indicia um presidente por tantos crimes, de
tamanha gravidade, em particular os crimes contra a humanidade, cujo julgamento
cabe ao Tribunal Penal Internacional, em Haia.
Com base em evidências expostas nas 1.180
páginas, nove tipos criminais distintos foram atribuídos a Bolsonaro: epidemia
com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo;
incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de
verba pública; prevaricação; crimes contra a humanidade e crimes de
responsabilidade.
A CPI também indiciou outros 65
investigados, ente eles os ex-ministros Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo; os
ministros Marcelo Queiroga, Onyx Lorenzoni, Wagner Rosário e Braga Netto; o
ex-diretor de Logística da Saúde Roberto Ferreira Dias; o empresário Francisco
Maximiano, da Precisa; os deputados Ricardo Barros e Osmar Terra; os filhos do
presidente Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro, além das empresas Precisa e VTC
Log.
A busca de consenso entre os senadores é
fundamental para dar solidez às conclusões. A apresentação de um relatório
impreciso, contaminado por revanchismo político e sem sustentação jurídica
seria uma porta aberta para que os indiciados alegassem inocência, pondo a
perder um trabalho de cinco meses, fundamental para explicar e apontar os
responsáveis pela hecatombe que se abateu sobre o país.
Numa de suas mais cruéis declarações no
decorrer da pandemia, e foram muitas, Bolsonaro disse que morrer era destino de
todos. Mas não se pode imaginar que os mais de 600 mil mortos sejam uma
fatalidade. Um dos méritos da CPI foi ter mostrado que o destino poderia ter
sido outro. O relatório traz detalhes de como o governo se esmerou em
menosprezar a gravidade da pandemia, sabotar a vacinação, perseguir a criminosa
“imunidade de rebanho”, pregar medicamentos ineficazes contra a doença,
disseminar desinformação que também mata, omitir-se diante da população
indígena e deixar gente morrer por falta de oxigênio, num dos mais assombrosos
capítulos da história de horror. Sem falar nas experiências macabras com
cobaias humanas.
O relatório final é só o início do longo
trabalho para punir os responsáveis pela maior tragédia sanitária do país.
Levar as acusações aos tribunais não será fácil. A Procuradoria-Geral da
República, com Augusto Aras à frente, é obstáculo quase intransponível. Mas a
meta não deve ser abandonada. Os senadores têm o dever de votar um relatório
robusto, preciso, com chance de sucesso jurídico. O comovente depoimento da
jovem que perdeu pai e mãe para a Covid-19, levando às lágrimas a intérprete de
libras, deveria lembrar a todos que tamanho morticínio não pode passar impune.
A imperdoável trapalhada de Bolsonaro com o
Auxílio Brasil
O Globo
Não faltam motivos para o governo se
preocupar com a questão social. Mais de 43 milhões de brasileiros não têm
alimentos suficientes e 19 milhões passam fome. Combater a miséria deveria ser
prioridade do presidente Jair Bolsonaro. Infelizmente, ficou evidente esta
semana que a iniciativa de aumentar o valor do Bolsa Família, rebatizado
Auxílio Brasil, não passa de demagogia.
À primeira vista, elevar o benefício de R$
189 para R$ 400 parece uma medida correta. Mas não é. Da forma como foi
pensada, é populista, eleitoreira e não cabe no Orçamento. Prejudicará o país
todo, em particular os mais pobres. Bolsonaro só está interessado em aumentar a
chance de disputar a reeleição em posição mais vantajosa nesse eleitorado, que
tem perdido para o principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.
Em vez de embasar o novo programa social em
estudos robustos que permitissem atacar a miséria de forma duradoura, criou-se
um benefício com prazo de validade, não por acaso coincidente com o calendário
eleitoral. Para não violar o teto de gastos, veio acompanhado de uma engenhosa
pirueta fiscal, capaz de garantir no Orçamento os recursos para financiar os R$
400, que Bolsonaro vê como valor mínimo necessário para reconquistar a
popularidade perdida.
O governo admitiu estourar em R$ 30 bilhões
o teto de gastos de 2022. E nem isso bastaria. O resto da verba para o Auxílio
Brasil ainda depende da pedalada nos precatórios — leia-se calote — e de uma
reforma absurda no Imposto de Renda que, ao contrário do que o governo faz
crer, tende a reduzir a arrecadação, e não ampliá-la. Na prática, tudo isso
fará crescer a pressão orçamentária e a indefinição sobre o que fazer em 2023.
Não foi gratuita a reação do mercado — e o
vaivém do governo — diante de toda essa ginástica. A manobra é um exemplo
cristalino de como o governo dá com uma mão e tira com a outra. Dá com a mão da
demagogia aquilo que tira com a mão da inflação.
Obedecer ao teto traz benefícios a todos
porque permite baixar os juros e diminuir o custo da dívida pública.
Desobedecer gera incertezas, eleva o gasto com a dívida e drena recursos que
poderiam ir para áreas críticas. E não só. Desvaloriza o real e alimenta a
inflação — que pesa mais no bolso dos pobres. Para piorar, derruba o
crescimento, retarda a volta dos empregos e a geração de renda. É, em suma,
certeza de mais fome no futuro.
A União não gasta pouco. Gasta muito e
gasta mal. O governo Bolsonaro quase nada fez para mudar essa situação. Um
amplo leque de reformas corajosas, agenda hoje fora de discussão, seria a
solução de longo prazo para abrir recursos. Mesmo no curto prazo, havia outras
alternativas. Mas Bolsonaro optou por garantir emendas parlamentares, reajustes
de servidores e outros desvarios. Em vez de se esquivar, o ministro da
Economia, Paulo Guedes, deveria tratar de evitar que o teto caia sobre nossas
cabeças. Os brasileiros famintos não merecem tanto amadorismo.
Ofensiva eleitoral do Planalto vê teto de
gastos como estorvo
Valor Econômico
Pagamento de acréscimo temporário de R$ 200
até o fim de 2022 é expediente eleitoreiro óbvio
A decisão do presidente Jair Bolsonaro de
elevar para R$ 400, temporariamente, o valor dos pagamentos do novo Auxílio
Brasil, substituto do Bolsa Família, indica que o governo mudou de atitude e
que não está mais disposto a ser tolhido pelas regras fiscais para ganhar
eleições e fará de tudo para isso. O pagamento de acréscimo transitório de R$
200 adicionais até o fim de 2022 é expediente eleitoreiro óbvio e poderá selar
o destino do teto de gastos pelos piores motivos. É possível que Bolsonaro não
consiga seu intento. A conclusão de que o teto de gastos tornou-se um estorvo a
seus projetos continuístas, porém, é nítida.
Há mais de um ano o governo se debate com a
criação de um programa social com a marca do presidente. Chegou ao limite do
tempo - não poderá fazê-lo em ano eleitoral. O Auxílio Brasil deve estrear em
novembro e houve aumento do IOF para custear as parcelas de novembro e dezembro
do programa, com 17 milhões de famílias (o Bolsa Família tem hoje 14,6
milhões).
As dificuldades para colocar de pé um
programa ordenadamente, dentro das regras do jogo, são de várias ordens.
Bolsonaro trouxe consigo ao governo críticos do Bolsa Família. Nem o presidente
nem o ministro Paulo Guedes jamais pensariam em formular um programa social se
o atual, bem-sucedido, não fosse obra do PT, com Lula, e se no Nordeste, onde
há enorme fatia da população assistida por ele, a popularidade do presidente
não fosse a menor em todo o país - e a de Lula, a maior.
O presidente vetou a extinção e fusão de
programas menos eficientes, e a utilização de seus recursos para um Bolsa
Família mais robusto. Foi em 25 de agosto de 2020 que Bolsonaro fulminou as
propostas do então Renda Brasil: “Não vou tirar dos paupérrimos para dar aos
pobres”. Como o dinheiro é escasso, o ministro da Economia passou um ano
tentando achar fontes de financiamento para o novo programa. A cada
“descoberta”, causou mais confusão.
Houve então duas investidas finais. A
primeira foi a de taxar lucros e dividendos, para bancar o Auxílio Brasil com
benefício maior, em meio a uma reforma ruim e desengonçada do IR. A Câmara
virou o programa de cabeça para baixo, e em vez de propiciar ganho modesto de
arrecadação, ele trará redução de R$ 28,9 bilhões em 2022 e perdas para os
Estados. O Senado sentou em cima do projeto aprovado na Câmara e as esperanças
dessa reforma feneceram.
A segunda ação foi a da PEC dos
precatórios, na qual apenas R$ 40 bilhões dos R$ 89,1 bilhões seriam pagos,
abrindo espaço de R$ 49,1 bilhões de despesas - pelo adiamento de outras
despesas. É nessa PEC que o governo quer acrescentar autorização de crédito
suplementar para pagar R$ 100 do Auxílio fora do teto.
Com o apoio do Centrão e de seu homem na
Casa Civil, Ciro Nogueira, Bolsonaro resolveu abrir um rombo no teto de gastos.
Com o pagamento de R$ 400, o custo do Auxílio sobe a mais de R$ 80 bilhões, em
um orçamento em que o governo esperava ter uma folga fiscal de R$ 40 bilhões
que desapareceu, tragada pela elevação do INPC, indexador de despesas
obrigatórias.
Se depender dos aliados do presidente, a
conta é mais generosa. Há quem defenda colocar todo o aumento de R$ 200 fora do
teto. Há pressão para que outro auxílio, o emergencial, que termina este mês,
seja prorrogado. Com que recursos? Cogita-se crédito extraordinário, só cabível
para despesas urgentes e imprevisíveis, o que não é o caso.
O ministro Paulo Guedes está engajado na
campanha do presidente e tem procurado atender seus desejos eleitorais, mesmo
com arranhões na regra fiscal, como é o caso da PEC dos precatórios. O anúncio
do Auxílio a R$ 400 não foi divulgado oficialmente porque as resistências
partem da equipe da Economia.
A ameaça de desabamento do teto é séria e
assim os investidores entenderam, castigando as ações e o real. Há formas
dentro das regras para um programa social de R$ 300 e pagamento integral de
precatórios, mas passariam pelo fim das emendas do relator (R$ 18 bilhões),
cortes na pretensão do fundo eleitoral (de R$ 2 bilhões para R$ 7 bilhões) e em
despesas obrigatórias. O Centrão se colocou firmemente à frente da ofensiva
contra o teto.
A vitória desses interesses eleitorais será duro golpe na já abalada saúde da economia. Será mais difícil combater a inflação, os juros terão de ser maiores e o crescimento, raquítico, ainda menor. As chances de Bolsonaro se reeleger não aumentam, diminuem.
O fura-teto
Folha de S. Paulo
Em busca de recursos para salvar sua
popularidade, Bolsonaro põe em risco a estabilidade econômica
Diante do fracasso de sua administração no
combate à pandemia do coronavírus e de outros desafios que o Brasil
enfrenta, Jair
Bolsonaro decidiu partir para um vale-tudo eleitoral e ameaça levar o
país a uma nova crise econômica.
Ao cogitar romper
o teto de gastos inscrito na Constituição com a justificativa de que
sem isso não será possível ampliar programas sociais, o governo aumenta a
desorganização do processo orçamentário e flerta com um desastre que acabará
por prejudicar os estratos mais vulneráveis da população.
As primeiras tentativas de flexibilizar os
limites surgiram em julho, com a ideia de adiar o pagamento de dívidas com
precatórios judiciais, que poderia abrir R$ 50 bilhões de espaço para outras
despesas.
Agora, buscam-se recursos para substituir o
Bolsa Família por um novo programa social, o Auxílio
Brasil, e assim estancar a perda de popularidade do presidente, que tentará
se reeleger no próximo ano.
Bolsonaro determinou que sua equipe
encontre meios de custear o pagamento de R$ 400 por mês a 17 milhões de
famílias, mais do que dobrando o valor médio de R$ 189 dos benefícios pagos
atualmente a 14,7 milhões de famílias.
Na ausência de recursos para financiar tal
volume de despesas em caráter permanente, aventou-se classificar parte dos gastos
como temporários, acomodando um tanto dentro dos limites legais e outro fora do
teto.
Daí a proposta de furar a barreira imposta
pela Constituição em pelo menos R$ 30 bilhões, número que poderá se multiplicar
uma vez rompido
o dique.
Ainda há outras demandas a atender, em
especial as emendas parlamentares patrocinadas pelos aliados de Bolsonaro no
centrão, que podem alcançar R$ 17 bilhões --parte do preço cobrado para barrar
o impeachment do mandatário.
A inepta proposta de reforma do Imposto de
Renda, que poderia ajudar a financiar o novo auxílio se bem desenhada, empacou
no Senado, e não há disposição para buscar alternativas como cortes de
subsídios e outras despesas.
A sabotagem às balizas institucionais do
orçamento não começou nesta semana, mas avançou com a busca de recursos para
satisfazer os interesses da base parlamentar e salvar o pescoço do presidente.
O resultado dessa marcha insensata será
mais inflação e desemprego, pondo em risco a estabilidade econômica conquistada
a duras penas nas três décadas que se seguiram à redemocratização do país.
Após dois anos e meio investindo contra as
instituições erguidas pela sociedade brasileira para deter o arbítrio,
Bolsonaro ameaça destruir a confiança que resta nos mecanismos criados para
conter os custos da desorganização econômica.
Velho normal
Folha de S. Paulo
Relatos de abusos da ditadura cubana
evidenciam equívoco dos que tratam regime com benevolência
Um novo relatório da ONG Human Rights Watch
aponta violações graves e sistemáticas aos direitos
humanos de manifestantes que foram às ruas protestar contra a ditadura
cubana no dia 11 de julho.
Os atos, raríssimos, surgiram de forma
difusa, como manifestações
de artistas contra novas restrições impostas pelo governo em Havana. O
desabastecimento de remédios e alimentos em plena pandemia deu oxigênio ao
movimento.
Segundo a Human Rights Watch, as
arbitrariedades atingiram mais de 130 pessoas. A partir de entrevistas
telefônicas, colheram-se relatos de prisões arbitrárias, condições desumanas de
encarceramento e abuso sexual de mulheres.
Os testemunhos são particularmente
inquietantes diante da proximidade de uma nova rodada de atos, marcada para 15
de novembro, declarada antecipadamente ilegal pelo regime comunista comandado
por Miguel Díaz-Canel.
Como de costume, o líder culpa os Estados
Unidos, os quase 60 anos de embargo econômico à ilha caribenha e os cubanos que
fugiram para a Flórida por todos os males que afligem a população. É o velho
normal do regime fundado por Fidel Castro em 1959, assim como a violência ante
o dissenso.
Se o cerco americano a Cuba é um fóssil
vivo da Guerra Fria, a ditadura também o é. Ambos convivem num sistema em que o
único prejudicado real é o povo cubano.
A reverberação disso afeta o Brasil, onde a
fatia majoritária da esquerda nutre romance com o idílio revolucionário há
muito desfeito sob as balas crivadas no paredão.
Fosse restrito a grupelhos, seria só
lamentável. Mas o principal apoiador do regime cubano no Brasil é o
ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, que hoje lidera as pesquisas de intenção de voto para
disputar o Planalto em 2022.
Durante os protestos de julho, o líder
petista se limitou a dizer que a ditadura não havia feito nada parecido com a
violência sofrida um ano antes por George Floyd, homem negro morto pela polícia
nos EUA.
Depois, Lula e outros subscreveram carta
aberta no jornal The New York Times pedindo o fim do embargo, sem qualquer
expressão de empatia com os manifestantes.
Esse déficit democrático da esquerda, associado ao apoio financeiro que a ilha recebeu dos governos do PT, só dá munição à argumentação primária do bolsonarismo de que o petismo é um comunismo à espreita. Lula poderia mudar isso, mas é improvável a esta altura.
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