Valor Econômico
É o teto que garante um equilíbrio fiscal
sustentável e quando é atacado aumenta a incerteza sobre a inflação
Combater inflação com medidas mágicas, como
congelamento de preços, ou medida nenhuma - “é só um choque temporário, vai se
dissipar com o tempo” - é uma longa tradição latino-americana. Infelizmente se
não se atacar seus fundamentos fiscais, seus mecanismos de propagação e
reverter expectativas, a inflação continuará dando um duro choque de realidade
para aqueles que acreditam em magia.
A Argentina determinou semana passada o
congelamento dos preços, por três meses, de mais de 1.200 produtos. O objetivo
seria combater a inflação altíssima que já ultrapassa 50% ao ano naquele país.
Temos dúvida se esta é somente uma medida cínica com fins eleitorais ou se há
alguma convicção de que ela possa funcionar, mesmo não tendo surtido qualquer
efeito prático nas inúmeras vezes em que foi aplicada pelo mundo afora. Neste
último caso estaríamos diante de uma espantosa incapacidade de aprender, mesmo
para os padrões latino americanos onde erros são repetidos recorrentemente, com
certo entusiasmo até.
Em suas primeiras aplicações como política anti-inflacionária, como no Plano Cruzado, o congelamento era como que uma medida milagrosa que por si só iria resolver o problema. Havia uma leitura de que a inflação era quase que só inercial e quebrando esta inércia não haveria mais repasses aos preços e todo um processo auto-alimentado - eu aumento meu preço por que um fornecedor meu aumentou e alguém aumentará o seu por que eu aumentei o meu, e assim por diante - seria interrompido.
Nestes planos, era proibido reajustar o
preço de qualquer produto, e assim, choques externos, aumentos de custo,
problemas de entressafras não podiam ser acomodados com variações no preço.
Como não há sentido em vender abaixo do custo, os produtos simplesmente
desapareciam. A escassez inicialmente localizada vai se propagando, uma série
de distorções vão sendo adicionadas para tentar resolver um problema sem
solução até que a situação fica insustentável - se nada mais for feito - e os
preços explodem.
No caso do Cruzado, isto ocorreu um mês
depois de uma eleição que beneficiou muito o partido do então presidente
Sarney. No caso da Argentina, preços serão liberados logo depois de uma eleição
que, tudo indica, não favorecerá o presidente Fernandez.
A inflação no Brasil está em patamares que
há muito não víamos, devendo terminar 2021 em torno de 9%. Ainda não vemos
ninguém defendendo congelamento por aqui, aparentemente aprendemos com nossos
erros, ao contrário de nossos hermanos argentinos. Entretanto, como no caso dos
congelamentos, muito do que se discute por aqui ainda ignora as causas últimas
de nossa inflação e, consequentemente, as soluções propostas tendem a não
funcionar.
A pressão inflacionária atual vem em grande
parte de choques externos nos preços das commodities, dos preços administrados
de energia que sobem devido à crise hídrica, somados à desvalorização cambial
decorrente das incertezas criadas por Bolsonaro. Estas incertezas são não só
políticas, associadas aos inúmeros conflitos gerados pelo presidente - algo que
está em sua natureza e estratégia eleitoral - mas também sobre a situação
fiscal do país.
Embora muitas vezes pareça haver um
reducionismo no debate, onde a questão seria manter ou não o teto dos gastos,
as inúmeras tentativas do governo e do Congresso de romper os limites deste
teto mostram que há pouca compreensão entre estes atores da importância de se
manter a as contas públicas em equilíbrio, o que é chave para o comportamento
dos preços. O teto é o que temos hoje para garantir um equilíbrio fiscal
sustentável e a cada vez que é atacado aumenta-se a incerteza futura sobre a
inflação, as expectativas se deterioram um pouco mais e, via comportamento
defensivo dos agentes, preços são reajustados com mais frequência.
O comportamento errático do presidente e do
Congresso, e as incertezas que criam, também incentivam a fuga de capitais -
não há ambiente para investimento aqui - o que leva à desvalorização cambial,
com grande impacto sobre preços domésticos (e.g., combustíveis). No passado
choques de commodities levavam à valorização do câmbio, dada a maior oferta de
divisas, mas o governo Bolsonaro conseguiu a façanha de inverter esta relação,
realimentando a inflação.
Congelamentos de preços, da forma que
estamos vendo agora na Argentina, nunca funcionaram, pois ignoram os
fundamentos da inflação, um comportamento também muito comum no Brasil. Por
exemplo, muitos aqui se opuseram ao aumento tardio dos juros pelo Banco Central
pois interpretavam nossa inflação como mero choque de oferta. Estamos vendo que
é muito mais que isto. E a política anti-inflacionária não funcionará ou terá
um custo muito mais alto em termos de perda de produto se não ficar claro para
os agentes que nos manteremos em uma trajetória fiscal equilibrada.
Infelizmente, a cada avanço observado nesta
dimensão, adiciona-se um ruído ou uma crise política que ameaça pôr tudo a
perder, aumentando a incerteza. Isto realimenta choques que, ao contrário de se
dissipar com o tempo, são amplificados, se propagando por toda a economia. A
proposta desta semana de um Auxílio Emergencial que implicaria em gastos acima
do teto é só mais um episódio nesta linha. Ao ignorar o impacto desta medida
nas contas públicas provoca uma reação dos agentes econômicos, aumentando a
incerteza um pouco mais, e junto com ela as previsões de inflação.
Como há pouca chance de o presidente mudar
seu comportamento, temos um quadro pouco favorável para inflação no curto
prazo. Obviamente, não é impossível um cenário ainda pior em que ele tente mais
uma mágica populista perto das eleições, e.g., farta distribuição de benesses e
algum controle dos preços administrados. Não parece haver espaço para se tentar
algo nas dimensões do que se está fazendo agora na Argentina, mas em se
tratando do atual governo, o que está ruim pode sempre piorar.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é
professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é
professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).
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