Correio Braziliense, 19/10/2021
Pela primeira vez na nossa história, o Brasil
apresenta sinais de que sua crise é parte de uma decadência, que vai exigir
anos, talvez décadas, para ser superada, recuperando o rumo do
desenvolvimento civilizatório. Ainda no início dos anos 1990, o livro “O
Colapso da Modernidade Brasileira” já alertava que o progresso brasileiro seria
interrompido em decorrência da falta de cuidado com a desigualdade social, com
os desequilíbrios fiscal e ecológico, com a baixa qualidade da educação, a
tolerância com a corrupção e a ineficiência, o desprezo com a ciência e a
tecnologia.
O atual debate político, prisioneiro do
confronto em 2022, exclui a ideia de que Jair Bolsonaro é um fenômeno
trágico e brutal, mas passageiro, e que, ao se abraçarem a ele, seus
opositores ignoram a dimensão da tragédia histórica que o Brasil
atravessa há anos. O momento atual é visto como uma crise, consequência do
Bolsonaro quando, na realidade, ele é um indicador da nossa decadência.
A ânsia de emigração também é um indicador de decadência. Não se trata de saída por períodos curtos, para estudar, fugir de repressão, de guerra civil, como ocorre em outros países. As pessoas estão emigrando para fugir da violência, da incerteza, da falta de perspectiva de bem-estar e da ausência de desafio para construir uma nação; elas abandonam o Brasil por falta de esperança. A emigraçāo é facilitada pela globalização que permite manter os laços familiares e culturais, mesmo vivendo no exterior. O emigrado troca a vida angustiante e sem perspectiva no Brasil por uma vida segura no exterior, conversando com som e imagem com as pessoas que deixou no Brasil, assistindo ao futebol, às novelas e ao noticiário da televisão brasileira.
A decadência que provoca a emigração se agrava
porque rouba o potencial desses emigrantes que vão beneficiar o país que os
adota ou tolera. Um dia, algum desses emigrantes, ou seu filho ou filha,
provavelmente receberá um Nobel em nome do país onde vive e produz.
Outro indicador de decadência está no
despreparo educacional de grande parcela da população de adultos “analfabetos
para a contemporaneidade”: não conhecem bases da ciência, não entendem os
problemas do mundo, não falam idiomas estrangeiros. Isso indica que não
estamos preparados para a integração no mundo, nem sintonizados com
a velocidade com que ele avança. O corte de verbas promovido recentemente por decisão
do presidente da República induz à decadência, porque o país que não invista
maciçamente em conhecimento fica para trás em relação aos outros países.
A violência que nos rodeia é um indicador de
decadência. Ainda mais a aceitação e acomodamento de sobreviver no meio de uma
guerra civil informal, mas mortífera. Vivemos cercados por guardas, muros,
vigilância; assistimos o noticiário como descrição de campo de batalha, sabendo
que esse quadro continuará se agravando, empurrando muitos para a migração ao
exterior e outros para aceitarem viver no meio da guerra sem saber quando
será sua vez de vítima.
É prova de decadência moral a tolerância com a
divisão da sociedade brasileira por uma brutal concentração de renda, cuja
manifestação mais anti-civilizada é sermos o maior exportador de alimentos
e termos um dos maiores contingentes de pessoas famintas entre todos os países
do mundo. A aceitação como natural das notícias sobre a fome intercaladas de
propaganda de alimentos e de concursos de culinária é mais um indicador de
decadência moral que lembra o tempo em que a escravidão era aceita com
naturalidade, separando os brancos dos negros, agora quem come e quem passa
fome.
Também é prova de decadência termos o
presidente mais ridicularizado entre todos do mundo, visto como motivo de
galhofa internacional, representando um país em decadência, ao negar a
importância da ciência, dizer com orgulho que não tomou vacina e que não vê
necessidade de distanciamento social. Ainda mais quando a oposição torna-se
prisioneira dos interesses eleitorais imediatos, sem perceber a decadência, nem
apresentar rumos alternativos para barrá-la e promover a ascensão do país
a um patamar superior de civilização. Nossos líderes parecem pilotos que
disputam controlar o leme do navio, sem ver o iceberg da decadência em frente.
*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
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