O Estado de S. Paulo
Nunca é demais relembrar o golpe militar de 1964, apontando diferenças e semelhanças em relação ao 8 de janeiro de 2023
Passado mais de um mês dos atos de terror
vandálico de 8 de janeiro em Brasília, é necessário voltar àqueles
acontecimentos para que a memória histórica não se apague. Somos um país
desmemoriado e, por isso, volto às profundezas dos atos que buscavam criar o
caos para propiciar uma “intervenção militar”, como os baderneiros apelidaram o
golpe de Estado.
Assim, nunca é demais relembrar o golpe
militar de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos no Brasil,
apontando diferenças e semelhanças.
Comecemos pelas diferenças. Em 1964, o golpe foi produto da “guerra fria”, instigado pelo governo dos Estados Unidos, como se comprova com a documentação que apresento em meu livro 1964 – O Golpe. Agora, o governo Biden foi o primeiro a pronunciar-se contra as intenções do vandalismo de 8 de janeiro.
Como um todo, o Brasil em 1964 era mais
atrasado em pensamento e visão de mundo. As desigualdades sociais eram tidas
como “invenção comunista”, ainda que milhões de nordestinos famintos rumassem a
São Paulo e ao Sudeste em busca de emprego.
Hoje, a insistência de Jair Bolsonaro sobre
o “perigo” de que o atual governo “implante o comunismo” soa como anedota de
bêbado.
O espírito e as ações derivadas da “guerra
fria” dominavam o mundo naquele 1964 e se sobrepunham, em cada país, aos
problemas e às soluções locais. Hoje, as mudanças climáticas são a grande
ameaça e nenhum governo se atreve a negá-las.
Por que, então, o vandalismo em Brasília
nos preocupa e faz relembrar 1964?
Será porque os baderneiros tiveram cobertura
militar ao acamparem em frente ao QG do Exército em Brasília? Ou porque
entraram livremente no Palácio do Planalto, sem que o Batalhão da Guarda
Presidencial sequer tentasse impedir o assalto? Ou porque concentrar milhares
de pessoas numa passeata recorda o desfile da Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, que em 1964 pedia o golpe?
A diferença é que nas marchas de 1964 todos
desfilavam em paz, exercendo o direito de protesto. Até gritavam, no direito de
berrar, mas sem o vandalismo que, em 2023, marcou a insânia terrorista do dia 8
de janeiro.
Existe, no entanto, uma diferença
fundamental com 1964. Agora, todos os meios de comunicação – dos jornais às
revistas, do rádio à televisão – rejeitam o golpe e criticam o terror dos
baderneiros. As cenas de vandalismo apresentadas por diferentes redes de TV são
algo a não esquecer como ameaça não apenas às instituições democráticas, mas ao
próprio estilo de vida de cada um de nós. Até o dia 8 de janeiro, jamais
havíamos visto no Brasil o ódio transformar-se em atitude política individual.
As cenas de destruição nas sedes dos Três
Poderes em Brasília mostraram uma turba enfurecida, recrutada País afora por
meio das invencionices e mentiras das redes sociais para destruir o que
encontrasse à frente.
Em 1964, parte dos meios de comunicação
acompanhou a posição dos partidos políticos que, no Congresso, se opunham ao
governo e admitiam até a sua destituição. Alguns foram além dos limites da
liberdade de expressão, como o jornal carioca Correio da Manhã, que chegou a
dar a senha do golpe num furioso editorial de primeira página.
Agora, chama a atenção o fanatismo
implantado em parte da população e que os bolsonaristas cultivam alimentando o
ódio e nos dividindo em dois grupos em guerra. É normal que a política desperte
paixões, mas é anormal que leve ao ódio destrutivo e ameaçador de 8 de janeiro.
Além disso, as cenas brutais, mostradas na
TV, de milhares de indígenas Yanomamis envenenados pelo mercúrio dos
garimpeiros ilegais buscando ouro nos rios amazônicos transforma-se na nova
versão de um genocídio. Não importa sequer se genocídio implica plano prévio de
extermínio de um grupo (como na Alemanha de Hitler contra os judeus), mas sim
os efeitos e resultados. Tal qual os judeus na Alemanha, os Yanomamis não
cometeram crime algum, mas são desprezados – num desprezo que se transforma em
perseguição, unicamente por serem indígenas.
Os rios amazônicos continuarão envenenados
pelo mercúrio dos garimpeiros por mais de um século. Não bastará que a
sociedade brasileira, como um todo, derrote nas urnas os adeptos do horror,
porque isso não limpará os rios da Amazônia do mercúrio que polui as águas nem
devolverá cabelo às crianças indígenas escalpeladas pela contaminação.
As cenas que a TV mostra agora superam em
horror a própria maldade.
O terror vandálico de 8 de janeiro em
Brasília, por outro lado, desatou uma perigosa aceitação tácita de tudo o que
venha do governo de Lula da Silva. O vandalismo bolsonarista foi tão
horripilante que poderá, até mesmo, nos fazer perder a visão crítica do que
faça o atual governo lulista, se repetir as fraudes do tempo passado em que nos
governou.
Que cada um, portanto, esteja vigilante
para que o horror não volte ao presente, mesmo disfarçado de benigno.
*Jornalista, escritor, Prêmio Jabuti de Literatura
2000 e 2005, Prêmio APCA 2004, é professor aposentado da Universidade de Brasília
2 comentários:
Como o autor aponta, o passado chega ao presente também pelo governo Lula. Como o autor, também espero que este não repita as fraudes e corrupções que mancharam os bons resultados dos seus 2 primeiros governos!
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