O Estado de S. Paulo
Pouco se casa com a sabedoria política de MG a tentativa de Zema de vir a ser o líder da Região Sul/Sudeste mediante a exploração do antagonismo com o Norte/Nordeste
A Constituição brasileira não foi fruto de
pensado projeto político, pois veio se formando ao longo dos trabalhos da
Assembleia Constituinte, construída, portanto, na arte da negociação entre
interesses políticos divergentes, vindo a ser “avançada numa parte e
conservadora noutra”.
Atomizou-se o processo de sua elaboração, pois foram criadas oito comissões temáticas, cada qual subdividida em três subcomissões. Estes textos foram aglutinados, formando-se conjunto imenso e desordenado, exigindo ser organizado, tarefa que coube à Comissão de Sistematização, composta por 49 membros mais os presidentes e relatores das comissões temáticas. Demorou quatro meses a apresentação de projeto parlamentarista, que as forças conservadoras acusaram de estatizante e xenófobo.
Gerou-se, então, o surgimento do grupo
suprapartidário, industriado por Sarney, denominado Centrão, forçando a mudança
do regimento para permitir a apresentação de emendas coletivas de capítulos,
desde que subscritas por mais de 280 constituintes, com preferência de votação,
a substituir o texto oriundo da Comissão de Sistematização.
O Centrão nasceu ali e perdura até hoje,
tendo já consagrado em seu nascimento o lema franciscano: “é dando que se
recebe”. Era uma demonstração de força da maioria anônima contra o grupo
seleto, os de primeira classe, que haviam integrado a Comissão de
Sistematização.
Com esse movimento, ganhou oportunidade o
federalismo conflitivo, arriscando-se perigoso confronto entre regiões,
especialmente quanto à discriminação de rendas. Acima dos partidos e das
ideologias, formou-se o grupo Norte-Nordeste, Centro-Oeste, que tinha por
slogan, estampado em cartazes nas paredes do Congresso: “292 votos e uma só
vontade”.
Obteve-se a justa destinação de 3% da
arrecadação dos tributos federais a programas de financiamento ao setor
produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (art. 159, I, “c”), por
via de instituições de caráter regional, os Fundos Regionais.
Foi apresentada, também, emenda coletiva,
com 297 assinaturas, visando à criação do voto ponderado nas eleições de
presidente da República. Cada distrito eleitoral (Estados e Distrito Federal)
teria um quociente eleitoral, calculado dividindo-se o total dos votos apurados
no Estado pelo número de representantes federativos. Por exemplo: Minas Gerais
tem 57 representantes federativos, 54 deputados e 3 senadores. Se, na eleição,
forem apurados 8.550.000 votos, deve-se dividir esse número por 57 (os
representantes federativos), tendo por resultado 150 mil, o quociente
eleitoral.
Destarte, o candidato a presidente que
alcance 750 mil votos em Minas teria 5 votos ponderados, ou seja, 750 mil
divididos por 150 mil, o quociente eleitoral. Se no Acre forem apurados 165 mil
votos válidos, deve esse número ser dividido pelo número de representantes
federativos, ou seja, 11 (8 deputados mais 3 senadores). O quociente eleitoral
será, portanto, 15 mil. O candidato que no Acre tenha 75 mil votos ficaria com
5 votos ponderados, isto é, 75 mil divididos pelo quociente eleitoral do
Estado, 15 mil.
Em conclusão, o voto de 750 mil eleitores
em Minas Gerais seria igual ao voto de 75 mil eleitores no Acre. Foi pensando
nessa proposta que a emenda do Centrão, relativa ao primeiro artigo do capítulo
dos Direitos Políticos, eliminava a menção ao voto direto com igual valor para
todos.
A proposta do voto ponderado por 40 votos
não foi aprovada, presentes, no instante da votação, apenas 400 constituintes.
A emenda supressora do voto direto e igual foi, por fim, excluída. Tal proposta
açularia a discórdia. Felizmente, o perigo de confrontação entre regiões foi
obstaculizado.
A população rejeita a exploração da
cizânia, como revela pesquisa da Genial/Quaest relativa à manifestação do
governador de Minas Gerais defendendo a criação de consórcio dos Estados do Sul
e Sudeste, o Consud, em defesa dessas regiões. Se a criação deste consórcio tem
aprovação do eleitor, também entre nordestinos, todavia, a maioria reprova ser
a disputa entre regiões objeto de exploração política, ora facilitada pela
divisão entre Lula e Bolsonaro. Além do mais, 85% dos entrevistados defendem
que o Brasil continue unido.
O eleitor mostrou bom senso, rejeitando a
irresponsável discriminação entre regiões, por querer um Brasil só, uno, em
sentido contrário ao incentivo do confronto Norte/Sul, como o fez Romeu Zema ao
dizer que os nordestinos vêm a ser vaquinhas que produzem pouco leite.
Como disse o CEO da Genial/Quaest na coluna
de Rossean Kennedy (Estado, 17/8): “O nosso eleitor vê como natural a disputa
por força política, mas acha inapropriado que um governador instigue a
rivalidade regional ao fazer a defesa nesses termos”.
O sentimento de brasilidade só se enriquece
com a heterogeneidade, sabendo que é um país único, a se vangloriar de seus
modos diversos de ser em unidade incindível politicamente. Pouco se casa com a
sabedoria política de Minas a leviana tentativa de Zema de vir a ser o líder da
Região Sul/Sudeste mediante a exploração do antagonismo com o Norte/Nordeste.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade
de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
3 comentários:
Esclarecedor
Sim, bastante.
Zema e Zambelli,uma dobradinha do barulho.
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