O Estado de S. Paulo
No meu solilóquio passageiro, não desisti de indagar: do que fogem os peregrinos? Nunca saberemos, assim como não sabemos o que se busca na peregrinação
Eu seguia pela Dutra, rumo a Paraty, onde deveria chegar até o meio da tarde para um painel na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Tinha subido no carro bem cedo. Para ser preciso, devo dizer que “vesti” o automóvel pouco antes das oito da manhã. Som desligado. Silêncio no veículo. Motorista solitário, quase contente em cismar sozinho em trânsito, eu pensava na vida e nas mulheres que não amei (Manuel Bandeira me ensinou certo, mas eu aprendi errado).
Foi em Taubaté que me dei conta. Era
sexta-feira, dia 11 de outubro, véspera do feriadomor, o de Nossa Senhora
Aparecida, e, no acostamento, afloravam andarilhos em trajes típicos de
praticantes de jogging. Em minutos, o número de caminhantes cresceu. Como
diriam os economistas, cresceu a taxas exponenciais. O fluxo da via, como
diriam os repórteres de rádio, ficou mais carregado. No celular, o navegador
georreferenciado e seu algoritmo recomendaram um desvio, para ganhar tempo.
Obedeci. Passei por outras franjas do município e, quando retomei a Dutra, a
rodovia estava enfartada. Tudo parado. Em seguida, começou a fluir
vagarosamente. Para continuarmos no jargão dos boletins radiofônicos, o
motorista encontrou dificuldades. Consideráveis.
O que passava de um lado e de outro da pista
tinha ares de uma dessas intervenções urbanas que artistas encenam no meio da
rua para alterar a rotina das metrópoles. Gente, gente aos milhares, escorrendo
a pé. Eram os romeiros de Aparecida. Umas pessoas abriam as palmas das mãos
para o alto, na altura do peito, como se quisessem sentir as gotas de uma chuva
que não caía. Outras pareciam rezar em voz alta. O vidro fechado não me deixava
ouvir.
Moças esbeltas, de bermudas de lycra bem
coladas à anatomia, não tinham um ar muito católico, mas marchavam convertidas.
Como um grito da moda, predominavam uns chapéus de pano, do quais escorria um
lenço largo para proteger do Sol a nuca, pescoço e ombros. Fiéis carregavam
cruzes de madeira de proporções variadas: umas, homeopáticas, não eram maiores
que uma sombrinha; outras superavam as dimensões de uma cama de casal.
Bandeiras imensas, com a imagem da santa, se projetavam contra o vento.
Camisetas litúrgicas acompanhavam a padronagem dos estandartes. Casais de mãos
dadas avançavam com os olhos pregados no chão. Grupos maiores conversavam e
gesticulavam distraídos, como se estivessem saindo do trabalho para almoçar.
Havia quem pendurasse o par de tênis nos ombros para palmilhar o asfalto com os
pés em chinelos de borracha sintética. Vi romeiros de bicicleta.
Existe a guerra da Ucrânia, existem os
massacres do Oriente Médio, existe a tal polarização da política brasileira e
existem os romeiros de bicicleta. E Deus, existe? No aconchego seco do
ar-condicionado, a 30 quilômetros por hora, pensei na velhíssima questão e logo
me senti pedante, ridículo e culpado. Se eu estacionasse ali mesmo, abrisse a
janela e puxasse assunto, seria mal recebido, e com justiça. No meu solilóquio
passageiro, porém, não desisti de indagar: do que fogem os peregrinos? Da
pós-modernidade? Não creio. Das brigas familiares? Do vício? Não creio
tampouco.
Fugirão de si? Nunca saberemos, assim como
não sabemos o que se busca na peregrinação. Será que cada ser humano busca uma
dádiva distinta, mas ainda assim uma dádiva? Pode ser. As caminhadas rituais
simulam o curso da vida, mas, até aí, é apenas uma metáfora, não é uma solução.
Nas cercanias dos postos de gasolina,
barracas portentosas, como pequenos circos mambembes com armação de alumínio e
lonas de plástico, acolhiam as procissões intermináveis, oferecendo um pouco de
descanso, um copo d’água, um dedo de prosa. Considerei que as pessoas que fogem
de si mesmas estão sempre em busca de si mesmas, e em seguida admiti que eu
estava julgando meus semelhantes, de um modo pusilânime, pretensioso e estéril.
Meus semelhantes usavam cajados feitos de metal. Eu usava o pisca-alerta. O trânsito
ia parar de novo.
Quando eu podia acelerar um pouco mais, o que
fazia com gosto, vinha o pedágio. Outra vez, o motorista encontrava
dificuldades. Nesses trechos, eu me desprendia das especulações pedestres e me
concentrava em identificar de longe as cabines equipadas com cobrança
automática. Você pode achar que é fácil, mas eu erro.
Logo depois de Aparecida, com aquela catedral
que é maior que um estádio de futebol, o aplicativo me mandou pegar uma estrada
menor, mais estreita. Os romeiros milagrosamente desapareceram. Minha cabeça se
deixou povoar por outras fantasias, como as ondulações mais íngremes das terras
de Cunha, recobertas pelo capim baixo e pelas vaquinhas em preto e branco, que
deveriam estar na Suíça e não aqui.
No dia seguinte, na volta, ainda vi
peregrinos. Não poucos. Foram quase 37 mil ao todo, segundo a Polícia
Rodoviária Federal. Quatro morreram atropelados neste ano. Cheguei a São Paulo.
Tudo às escuras. São Paulo é a treva. Eu fugiria a pé da Enel? Sim, mas dá
preguiça. Eu iria a pé até Paraty? Dou risada sem querer. Se fosse para chegar
lá e jantar com Adauto, Maria Rita e Jaime, eu iria, sim.
4 comentários:
Um texto interessante, mas uma pergunta, na minha opinião, errada: "Do que fogem os peregrinos?" Esta pergunta parte do princípio de que eles estão fugindo, e fugindo de algo. Discordo deste princípio, respeitosamente. Não acho que a maioria deles esteja fugindo de algo, suponho que procuram algo, mesmo que o colunista talvez não entenda esta procura.
Faço uma pergunta semelhante ao colunista: Do que fogem os escritores quando resolvem escrever algum texto ou a sua coluna semanal?
Respeitosamente, ouso discordar de ti, companheiro anônimo. Fico com Eugênio Bucci. Imagino que aqueles que buscam, procuram algo fora da sua realidade, geralmente fogem do que não (mais) lhe satisfaz. Pode ser do casamento, do emprego ou da sua casa. Ou a dura realidade da vida sem sentido.
Seriam todos fugitivos, então? Estariam fugindo da sua realidade? Não sei, pelo que entendo muitos vão agradecer por melhorias que obtiveram na sua realidade. Ou pedir por melhorias nela... Não consigo ver fuga nestes comportamentos. Mas, obviamente, respeito outras visões.
Como é bom ler um texto com ironia fina e com profundidade para laboração existencial.
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