O Globo
Por menor que seja a nossa disposição, cá
estamos nós acompanhando o BBB em que se transformou o cotidiano das grandes
cidades
A “palavra do ano”, segundo o Dicionário Oxford, é brain rot — a deterioração intelectual pelo consumo indiscriminado de conteúdos superficiais, encontrados na internet. Não é um diagnóstico médico, mas questão de saúde cultural. A persistirem os sintomas — similares aos da depressão, da ansiedade, do TOC, da síndrome de burnout, do TDAH, das demências, do hipotireoidismo, da anemia e da insônia crônica —, não é um neurologista ou um psiquiatra que deve ser consultado, mas um técnico de informática. Porque o vírus da brain rot tem como transmissor o algoritmo — espécie de entidade obsessora, uma alma desencarnada digital que influencia os vivos, decidindo que conteúdos aparecem em seu feed.
Em tese, se você curte fotos de gatos, veria
mais publicações da Cora Rónai ou anúncios de ração para felinos. Se é
botafoguense, como eu, páginas sobre ansiolíticos se abririam automaticamente a
cada partida. Juntando os dois interesses, a máquina de pubar cérebros —
pilotada por Zuckerberg, Musk e Zhang Yiming —
lhe sugeriria seguir Gatito, o veterano goleiro do glorioso Fogão. Mas não.
Mesmo para quem não tem qualquer interesse em
tretas aéreas, o algoritmo forneceu uma overdose da saga da moça insultada e
exposta por se recusar a trocar de lugar com uma criança. Caindo de paraquedas
no embate entre a titular da janelinha e a mãe do birrento, uma passageira
resolveu armar um palanque a bordo da aeronave. Talvez tenha farejado, ali, uma
boa oportunidade de lacrar (e lucrar) no papel de justiceira. Armou e se deu
mal, porque o wokismo de ocasião não colou — e o vídeo-denúncia acabou sendo um
tiro no pé. Mas, de celular em punho, fez da pirraça um tema onipresente nas
nossas conversas.
Pouco antes, foi a vez de a valorosa Marinha
do Brasil fazer água. A pretexto de comemorar o Dia do Marinheiro, a arma que
já nos deu Tamandaré, Barroso e João Cândido embarcou na canoa furada da defesa
dos próprios privilégios. Para não ser torpedeado no corte de gastos (que
atingiu em cheio Saúde e Educação), o cisne branco se fez de patinho feio. Os
marujos se sacrificariam num mar de perigos enquanto os civis, esses folgados,
apenas dançam, surfam, bebem, fazem ioga e brincam de videogame. Baita tiro n’água
— e nós, que só nos lembramos da Marinha quando ela bota tanques fumegantes
para desfilar no 7 de Setembro ou apoia golpe de Estado, ficamos sabendo (mesmo
sem querer) que ela pode afundar mais ainda.
Em terra firme, por menor que seja a nossa
disposição, cá estamos nós acompanhando o BBB em que se transformou o cotidiano
das grandes cidades. Graças às câmeras corporais, a violência policial pode ser
apreciada praticamente ao vivo e em cores. Principalmente a de São Paulo —
o que obrigou o governador, muito a contragosto, a fazer uma correção de rota.
(A Bahia é
mais violenta, mas lá o governo é do PT,
então a indignação não se aplica.) Câmeras de segurança também flagraram
militante woke, em Belém, forjando acusação de agressão em carro de aplicativo
e sacando a carta do racismo (sempre um tiro no escuro).
Nem é preciso ir atrás desses e de outros
conteúdos. Eles nos alcançam, por terra, mar e ar, bastando que estejamos
conectados à internet. Talvez não haja dosagens seguras para esse tipo de
consumo. E não há cérebro que aguente.
2 comentários:
São três, pelo menos, os comentários que podem ser feitos sobre a coluna de hoje :
• Para quem encara o transporte público por não sei quantas horas diárias qual seria a melhor solução: o sujeito tentar passar melhor " seu " tempo acompanhando pela tela do celular o que mais " lhe " agradar, ou ficar olhando para os outros agraciados à sua volta, sem qualquer outro tipo de escolha.
• Mesmo sendo o caso da moça do avião a overdose da vez, todos, inclusive o colunista, não perderam a oportunidade de tirar sua casquinha em proveito próprio. Mesmo assim, o caso gerou bons comentários sobre que tipo de educação oferecemos e esperamos de nossas crianças, por exemplo.
• No contexto da economia da atenção, se o Facebook almeja lucrar com a minha " audiência ", ele, ao mesmo tempo, pelo menos me oferece a oportunidade de dar boas gargalhadas e acompanhar chamadas da BBC, Valor e outros sites de notícias. Acho, acho, que também deveríamos aprender a usar os tais algoritmos a nosso favor. Enfim.
😏
Achei o comentário acima umas 10 vezes melhor que a coluna e umas 100 vezes mais útil.
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