CartaCapital
Malgrado as diferenças históricas, são
inequívocas as semelhanças entre os programas econômicos de Trump e do nazismo
As promessas e ameaças de Donald Trump reproduzem
episódios já vividos nos labirintos da economia global. Digo reproduzem para
exprimir a incompatibilidade do factual imediato com a concepção que advoga a
dinâmica das estruturas nas trajetórias das economias de mercado
monetário-financeiras capitalistas.
A mais conhecida e dolorosa reestruturação daquilo que, parodiando Schumpeter, poderíamos chamar de Ordem Capitalista começou a se desenvolver a partir dos anos 30 e encontrou seu apogeu nas duas primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Essa reordenação foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas” do mercado autorregulado, agravadas pelo apego dos governos a políticas fiscais e monetárias conservadoras. Essa miopia liberal-conservadora suscitou violentas reações de autoproteção da sociedade assolada por desgraças como o desemprego em massa, o desamparo, a falência e a bancarrota.
Nesse período, a economia mundial foi palco
de rivalidades nacionais irredutíveis, que se desenvolveram sem peias, na
ausência de mecanismos de coordenação capazes de conter as desesperadas
iniciativas para escapar aos danos da crise. As ações particularistas, tomadas
em defesa das economias nacionais ou de grupos sociais, revelaram-se danosas
para o conjunto. Este foi o caso, no plano internacional, das desvalorizações
competitivas que acabaram provocando uma contração espetacular dos fluxos de
comércio e suscitando tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas
propagavam-se livremente, sem qualquer providência dos governos, imobilizados
pelos fetiches do padrão-ouro e do equilíbrio orçamentário. Assim, a economia
global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os
preços dos bens e dos ativos. Frações importantes das burguesias europeia e
norte-americana tiveram de rever seu patrocínio incondicional ao ideário do
livre-mercado e às políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento
e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego.
Não bastasse, assim que a coordenação do
mercado deixou de funcionar, setores importantes das hostes conservadoras
aderiram aos movimentos fascistas e à assim chamada “estatização” (sic)
impiedosa das relações econômicas como último recurso para escapar à devastação
de sua riqueza.
Aqui cabe uma reprodução do artigo já publicado em nossa CartaCapital a
respeito do recrutamento dos grandes industriais alemães pela liderança
nazista. Reunidos por Hermann Goering no Reichstag, os grandes empresários
ouviram o chanceler Adolf Hitler. Disse o führer: há que acabar com um regime
fraco de Weimar, afastar a ameaça comunista, eliminar sindicatos e permitir que
cada empresário fosse o führer de sua própria empresa. O discurso durou meia
hora. Quando Hitler terminou,
Gustav Krupp levantou-se, deu um passo à frente e, em nome de todos os
presentes, agradeceu-lhe por ter finalmente esclarecido a situação política. O
chanceler deu uma volta rápida em torno da mesa quando saiu. Eles o
parabenizaram cortesmente.
A opinião convencional e conservadora insiste
em afirmar a “estatização” da economia alemã na era nazista. Alguém mais
atilado poderia argumentar que, na verdade, ocorreu uma brutal privatização da
política econômica alemã. Malgrado as diferenças históricas, são inequívocas as
semelhanças de inspiração entre o programa de Trump e as políticas econômicas
dos regimes nazifascistas dos anos 30 do século XX. As semelhanças abrangem a
proclamação da primazia do interesse nacional, a privatização do Estado, ocupado
diretamente por um comitê de grupos empresariais, e a politização da economia,
administrada despoticamente pelo estatal-privatismo, na contramão da “liberdade
de mercado”. A onipresença dos poderosos das plataformas e das finanças no
gabinete de Trump mimetiza o poder da Siemens e da Krupp na política econômica
do III Reich.
Karl Polanyi, em sua obra A Grande
Transformação, escrevendo sobre esse momento da história, mostrou como a
revolta contra o despotismo do “econômico” revelou-se tão brutal quanto os
males que a economia destravada vinha impondo à sociedade. Estudando o avanço
do coletivismo nesta quadra, Polanyi conclui que não se tratava de uma
patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas da
emergência de forças gestadas nas entranhas do mercado destravado.
Com o colapso dos mecanismos econômicos,
a superpolitização das relações sociais tornou-se
inevitável. O despotismo da mão invisível teria de ser substituído pela tirania
visível do chefe. O político e a polícia começaram a invadir todas as esferas
da vida social, como se fossem suspeitas quaisquer formas de espontaneidade. •
*Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital,
em 22 de janeiro de 2025.
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