sábado, 18 de janeiro de 2025

Do ano das matrioskas aos novos desafios à democracia - Ricardo Marinho

As matrioskas (bonecas russas) foram criadas em 1890 por um pintor de uma oficina de artesanato chamado Sergey Malyutin (1859-1937) e foram apresentadas na Exposição Universal de Paris em 1900, tendo um grande sucesso. Começou como um brinquedo e acabou como um objeto de estimação.

Sua particularidade é que por ser oca, dentro existem outras bonecas que podem atingir o número que você desejar. Além de sua bela coloração, elas têm muitas simbologias. Uma delas é que elas nos ajudam a aprender a nos conhecer por dentro, a trazer à tona o que temos dentro de nós.

Parte disso é o que aconteceu conosco, brasileiros, no ano da graça do Senhor de 2024 que deixamos a pouco. As bonecas interiores, aquelas que não aparecem, surgiram à luz do público na eleição. Elas são muito menos bonitas do que aquelas que escondiam. Seus rostos não são tão sorridentes, por sentirem as suas aspirações frustradas, sentem que se esforçaram muito, e acreditam não ter recebido o que mereciam e o sentimento de que os jovens cidadãos não se sairiam bem no futuro.

Esses sentimentos foram sendo cultivados e ao longo de 2023 e 2024 apareceram, embora se estivesse fazendo movimentos fakes bruscos como o 8 de janeiro de 2023 que desejou sacudir a grande boneca sem êxito, mas isso não passou como um desentendido como se viu a pouco com o PIX. Como já se disse certa feita, o nome do pau, pau, o nome da pedra, pedra.

Quando terminou o primeiro turno em 2024, a boneca grande queria acalmar os ânimos iniciando pinturas e arranjos, e prometendo-lhes que teriam uma posição muito melhor, mas ela não tinha tempo hábil para tanto. Eles estavam passando por mais de um ano aguardando promessas por muito tempo (que não vieram à mesa), queriam seu espaço e gritavam à vontade, negando que se fossem comparadas às muitas bonecas do mundo onde não as teriam deixado tão mal e poderiam continuar melhorando.

Se a boneca grande corresponde à imagem do Brasil que na vitrine mundial é boa, admirada, com bochechas rosadas como o G20 percebeu, as bonecas internas representam a sociedade brasileira real que pensam que podem e merecem o prometido e muito mais.

Em particular, grande parte dos setores médios baixos e baixos que saíram da pobreza, que avançaram na escolaridade, que estão vivendo a revolução das comunicações, que, como disse Tocqueville (1805-1859), agora que têm mais, podem imaginar o que lhes falta: melhor saúde, melhor educação, melhores salários, dívidas menos onerosas e que veem com o progresso do Brasil mas que não o sentem no seu dia a dia, que há algo e/ou alguém que os impede de ter seu mérito reconhecido, querem outra dignidade no tratamento e não aceitam discriminação.

O elevador social começou a se mover sim, mas muito devagar e aquela aceleração desejada não veio. Como não se tem uma verdadeira concepção de país e dele no planeta e para ele, inclusive com alguns empreendedores que fariam Adam Smith (1723-1790) corar de vergonha com seus arranjos decrépitos e o governo parecendo viver em outro mundo.

O sentimento de decepção se acumulou e não havia outro lugar para canalizar ele que não as urnas. Mas nunca é demais recordar que o mundo nascido a 40 anos e sua herança são ao mesmo tempo os anos de maior progresso em todas as áreas da história do Brasil e que não foram feitos sozinhos, por trás deles houve um grande esforço social, mas também lideranças admiráveis.

Entretanto, surgiram também outros bonecos, feios e mal feitos não por Geppetto, com seus corações de madeira, mas de pedra, que destroem tudo, as escolas, o património cultural como se percebe com a comoção nacional e internacional do filme Ainda estou aqui, que saqueiam negócios, como o caos e, dedicam-se a caminhar sem pensar.

 Nesse espaço, vários vilões prontos para fazer o mal se reúnem. Mas eles estão lá, eles existem, e enquanto a grande maioria dos brasileiros não concordarem com isso, enquanto os partidos políticos não recuperarem um pouco de sua legitimidade professoral, enquanto a crise de representação e governabilidade não diminuir, o país como um todo seguirá patinando e não haverá progresso que permita que o faça avançar mais ritmicamente, talvez sem tanta fragmentação territorial e uma forma mais igualitária, capaz de recuperar algo como um “nós” no qual todos realmente nos encaixamos.

Um país onde os jovens têm naturalmente o seu cunho geracional, mas onde uma parte importante deles tenha um maior equilíbrio entre as emoções e a reflexão, entre a aspiração a maiores direitos e o cumprimento dos deveres, sabem que a história e a cultura existem e de vez em quando, por que não, ler um livro? Eles descobriram com espanto que há mais do que apenas faixas e slogans virtuais vazios.

Para isso, é necessário produzir a nossa concepção de país, nas instituições, na política e na estrutura econômica e financeira.

Se é verdade que amamos profundamente as instituições democráticas, devemos modestamente deixar de lado o que impede a seriedade da mudança como a para lá de necessária e sempre retardada reforma ministerial para se fazer o governo a imagem e semelhança da frente democrática que o possibilitou e não ouvir aqueles que aconselham imobilidade e conservação. Só assim a oposição responsável prevalecerá sobre o oportunismo e a irracionalidade de alguns e será possível raciocinar, debater, negociar e concordar com o que os cidadãos que desejam endossar a caminhada construtiva.

Ninguém em sã consciência acreditaria em um 2025 fácil, construir mais valores democráticos, bem-estar, dignidade e paz social será uma tarefa difícil, mas acredito que ao reverso da medalha da Inglaterra de 1940 não devemos trazer sangue e tão pouco lágrimas, mas teremos que produzir uma caminhada melhor graças ao nossa árdua labuta e suor. Não há outra escolha.

*Ricardo José de Azevedo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

 

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