O Globo
A repercussão do ato normativo da Receita Federal que determinava o monitoramento das transações com o Pix foi uma vitória maiúscula da oposição sobre o governo Lula. A medida começou a se disseminar empacotada no rumor de que o Pix passaria a ser taxado. Quando parecia que o rumor estava sendo desmentido, num esforço conjunto do governo com a imprensa, um vídeo do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que atingiu a estonteante marca de 300 milhões de visualizações, deu o golpe fatal na medida. Inconformada com a derrota política, parte da esquerda passou a alegar que o vídeo do deputado era “fake news” e que ele deveria ser punido, até com a cassação. A reação da esquerda, deslocando o debate do âmbito da política para o âmbito jurídico, merece uma reflexão.
O vídeo do deputado é simples, persuasivo e bem
construído. Ele começa esclarecendo que o Pix não será taxado, mas não descarta
que o governo em algum momento venha a fazê-lo. Em seguida, aponta que o
monitoramento das transações colocará o trabalhador informal na mira da Receita
Federal:
— Nessa maioria de brasileiros [que ganham R$
6 mil ou menos] — diz Nikolas, — muitos não declaram Imposto de Renda, porque
senão não conseguem pagar suas contas. Se é difícil sem declarar, imagina
o PT tirando
27,5% do que você ganha. É impossível sobreviver.
Em seguida, repete o argumento de senso comum
de que a carga tributária no Brasil é alta, mas que os serviços públicos
entregues são ruins.
O vídeo se apoia na imagem do governo Lula
como taxador do pobre, uma imagem que a direita vem construindo a partir de
episódios como o da cobrança de impostos sobre as pequenas importações (a “taxa
da blusinha”). Com um timing perfeito, Nikolas aproveita o burburinho e a
inquietação em torno do boato da taxação do Pix, toma a indignação contra a
falsa taxação e a reorienta contra a sanha arrecadatória do governo. Um golpe
político de mestre.
Evidentemente, é preciso separar a análise da
eficácia política do vídeo do juízo sobre o seu conteúdo. O argumento a favor
da evasão fiscal é oportunista, vindo de um político conservador que deveria
defender o estrito cumprimento da lei. E o velho argumento de que pagamos
impostos como na Suíça,
mas temos serviços públicos de péssima qualidade, é exagerado e equivocado.
Pagamos proporcionalmente impostos altos, e o seu emprego com certeza poderia
ser melhor. Porém, damos salário mínimo para os trabalhadores aposentados e
saúde e educação básica universal — que não são boas, mas razoáveis. Tudo isso
se apoia no pagamento de impostos.
A Suíça não é uma comparação pertinente, já
que a renda lá é dez vezes maior do que a brasileira. Se tivéssemos de buscar
uma comparação instrutiva, deveríamos olhar para o Paraguai, que tem
menos da metade da nossa carga tributária, mas não dispõe de algo como o SUS.
Lá, o pobre que fica doente precisa contar com poucos hospitais públicos ou
hospitais beneficentes como as Santas Casas e muitas vezes é obrigado a migrar
para o Brasil ou para a Argentina para ter atendimento.
Seja lá o que pensemos do mérito do argumento
de Nikolas Ferreira, seu vídeo foi obviamente eficaz. E foi um argumento
estritamente político, dentro das regras do jogo democrático. Por isso, são
completamente despropositadas reações como a da Advocacia-Geral da União,
que estuda
ingressar com uma ação contra o deputado por “disseminar informações
que prejudicaram a reputação” do Pix e da Receita Federal, ou a do grupo de
juristas Prerrogativas, que, junto com o PT, estuda pedir
a cassação (!) do deputado.
Em 25 de maio de 1969, o atacante Flávio,
do Fluminense,
recebeu um cartão vermelho numa partida contra o Vasco,
pelo Campeonato Carioca. O advogado do Fluminense, José Carlos Vilela,
conseguiu na Justiça comum a anulação do vermelho, com o argumento de que era
inconstitucional punir alguém sem oferecer direito de defesa. Flávio foi assim
escalado para o jogo seguinte, contra o América, e marcou o gol da vitória por
2 a 1. O Fluminense terminou conquistando o Carioca naquele ano. Para se
referir ao episódio, a imprensa cunhou a expressão vencer “nos tapetes dos
tribunais”, ou, simplesmente, “vencer no tapetão”, usada em oposição à vitória
esportiva, no gramado.
A reação de parte da esquerda contra o
sucesso político do vídeo de Nikolas lembra o Fluminense de 1969. Às vezes,
parece que a esquerda abandonou o jogo de disputar a opinião pública e agora
quer sempre vencer a política no tapetão.
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