Trump fará mal ao planeta
O Globo
Efeitos nefastos do novo mandato se
estenderão do clima à geopolítica, da economia à regulação da tecnologia
Ninguém pode se dizer surpreso com as
primeiras medidas tomadas por Donald Trump ao
assumir a Presidência dos Estados Unidos.
Elas refletem tudo o que ele repetiu ao longo da campanha que o levou de volta
à Casa Branca e, por absurdas que sejam, se alinham com o desejo dos eleitores
americanos. Não quer dizer que sejam menos preocupantes ou menos assustadoras.
Vistas no conjunto, representam retrocesso em diversas áreas — do clima à
geopolítica, da economia à tecnologia. A colonização de Marte prometida por
Trump é para lá de incerta, mas o Planeta Terra certamente ficará pior com ele
no poder.
Na política externa, há uma contradição entre o Trump que se proclama “pacificador e unificador” e o Trump que pretende retomar o Canal do Panamá, nutre pretensões sobre Groenlândia e Canadá e quer mudar o nome do Golfo do México. De um lado, ele foi essencial na negociação para libertar reféns do Hamas — fato que suscitou aplauso unânime na posse. De outro, ameaça a China e fala em investir nas “Forças Armadas mais fortes de que o mundo tem notícia”. Qual Trump prevalecerá, o bélico ou o pacifista?
Se no aspecto militar pode haver dúvida, no
econômico não há nenhuma. Trump abraçou a agenda mercantilista que tenta
proteger a indústria local por meio de tarifas, enxerga déficits externos como
problemas e considera o comércio internacional um jogo de soma zero. Promessas
populistas — como a revisão no sistema tarifário para “beneficiar famílias
americanas” ou exigir das agências federais que trabalhem para “derrotar a
inflação” — são equívocos que, uma vez postos em prática, cobrarão seu preço em
termos de crescimento e produtividade. Terão o efeito contrário ao desejado.
Mais grave é o incentivo que, sob o pretexto
de preservar empregos americanos, Trump pretende dar à exploração de petróleo e
gás e à indústria baseada no motor a combustão. O corte dos estímulos à
transição energética introduzidos por Joe Biden e a retirada dos Estados Unidos
do Acordo de Paris representam um recuo na agenda ambiental de consequências
gravíssimas. Sem o compromisso do governo americano para reduzir emissões dos
gases de efeito estufa, os danos das mudanças climáticas já em curso se agravarão.
Outro retrocesso previsível se dará na
regulação das redes sociais. Não foi coincidência a presença dos líderes das
maiores plataformas digitais na primeira fileira da plateia da posse. Trump
cedeu aos apelos daqueles que, disfarçados de defensores da liberdade de
expressão e da inovação, se recusam a assumir responsabilidade pelos danos que
causam. O decreto revogando as precauções adotadas pelo governo Biden na
inteligência artificial foi um primeiro sinal preocupante.
São um recuo civilizatório as medidas para
desmantelar políticas de diversidade e inclusão, em especial as relativas à
comunidade LGBTQIA+. E foi um absurdo oportunista o perdão aos insurretos que
invadiram o Capitólio para tentar mantê-lo no poder.
Como esperado, Trump concentrou energia nas
medidas de restrição à imigração ilegal. Parte delas traduz seu impulso
populista — a deportação de milhões é um mistério de ordem prática. Outra parte
enfrentará obstáculos na Justiça — como revogar a cidadania dos nascidos em
solo americano. As turbulências jurídicas e políticas do primeiro mandato de
Trump poderão parecer pequenas ante o que está por vir.
Êxito da concessão do Galeão depende de
restrições no Santos Dumont
O Globo
Governo acerta ao promover nova licitação
simplificada para aeroporto, mas precisa garantir regras estáveis
São bem-vindas as iniciativas do governo
federal e do Tribunal de Contas da União (TCU) para solucionar os problemas na
concessão do Aeroporto Internacional Tom Jobim/Galeão que ameaçam a
sobrevivência do negócio. A ideia é que o terminal carioca passe por um
processo simplificado de licitação. No modelo planejado, a operadora Changi,
sócia majoritária da concessionária RIOgaleão, poderia participar do certame, e
a Infraero deixaria o consórcio, a pedido da União. O lance mínimo será de R$
600 milhões.
O Galeão foi concedido à iniciativa privada
em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, mas as perspectivas de crescimento
projetadas à época nunca se concretizaram. A concorrência predatória do
Aeroporto Santos Dumont, cujo movimento foi equivocadamente inflado pelo
governo, a crise econômica e a pandemia contribuíram para o esvaziamento. Em
2022, a Changi, uma das maiores operadoras de aeroportos do mundo, chegou a
anunciar a intenção de deixar o negócio, mas depois se mostrou disposta a
permanecer, mediante negociação do contrato.
Um dos problemas era o valor elevado da
outorga (em torno de R$ 1,4 bilhão), tido como incompatível com a realidade do
aeroporto. Para superar o obstáculo, ficou acordado que as parcelas a vencer
serão atreladas às receitas. A intenção de prorrogar o atual contrato, com
vencimento em 2039, não foi adiante, e o Galeão terá de ser novamente licitado
ao fim desse prazo. Nas negociações, foi excluída a previsão de construção de
uma nova pista para pousos e decolagens, por se mostrar desnecessária.
As decisões terão de passar ainda pelo
plenário do TCU. Como o órgão tem participado das negociações, acredita-se num
desfecho favorável. Representantes do governo estimam que, vencida essa etapa,
seria possível realizar o leilão ainda no primeiro trimestre. O entendimento no
Planalto é que uma definição rápida sobre a concessão do Galeão favorecerá a
retomada de investimentos.
Por mais que sejam positivos os esforços para
salvar a concessão, de nada adiantarão se não houver um equilíbrio entre os
terminais internacional e doméstico do Rio. Foi esse descompasso que causou o
esvaziamento do Galeão e a saturação do Santos Dumont, refletida em atraso nos
voos, filas nos saguões e trânsito caótico no centro do Rio. Como acontece
noutras cidades do Brasil e do exterior, o esperado é que os terminais
funcionem de forma coordenada, cada um seguindo a sua vocação.
A operação descalibrada começou a ser
revertida com a decisão do governo federal — tomada após pressão das
autoridades do Rio — de restringir voos no Santos Dumont. Prova de que a medida
foi acertada é o aumento de usuários no Galeão. No ano passado, a concessionária
registrou recorde de 4,7 milhões de passageiros internacionais, aumento de 30%
em relação a 2023. Se a política de restrição de voos no Santos Dumont não for
adiante, não haverá nova licitação que dê jeito no Galeão.
Trump inaugura governo com desafios à ordem
global
Valor Econômico
Presidente americano passa a impressão de que
tudo pode, mas a realidade é bem diferente
Donald Trump voltou à Presidência dos Estados
Unidos com a energia recomposta por uma reviravolta política inesperada da
política americana. A experiência, porém, nem sempre conduz à moderação ou à
sabedoria, e Trump imediatamente assinou decretos que, se forem executados como
concebidos, prometem arrematar a obra de destruição da ordem internacional
construída pelos EUA, iniciada no primeiro mandato. “America first”, termo no
discurso de posse, é um cognome para o isolacionismo reativo - os interesses do
governo americano não poderão mais ser contrariados, sejam quais forem.
A lista de medidas é variada e abrangente, a
maior parte delas instruções para que os departamentos do governo reúnam dados
que comprovem teses trumpistas. As tarifas não foram nem por um minuto
esquecidas. Ele disse que provavelmente em fevereiro taxará em 25% produtos
mexicanos e canadenses, com os quais tem um acordo comercial, já modificado em
seu primeiro mandato por exigência sua. A primazia de os parceiros inaugurarem
a lista de punições diz o suficiente sobre o que Trump pensa sobre tratados comerciais
- nada valem se não forem totalmente convenientes aos EUA. Trump ignora tarifas
comuns e mobilidade de mão de obra - objetivos fundamentais de qualquer acordo
comercial - e ainda determinou emergência na fronteira do México para conter a
imigração, com o auxílio de tropas.
O estilo “transacional” do presidente se
revela em outra medida inesperada, que atende à aliança com os bilionários das
big techs, pressionados em todo o mundo e que acorreram a uma aliança com Trump
para tentar impedir todas as regulações que lhes sejam prejudiciais na arena
internacional. Trump determinou que as agências do governo colham dados,
visando medidas retaliatórias, dos países que cobrem impostos
“extraterritoriais” das multinacionais americanas. Esse é o núcleo do pacto
global feito pelos países da OCDE em 2021, para uniformizar taxação mínima a
multinacionais de qualquer setor e país que se abriguem em paraísos fiscais
para pagar menos tributos. A Receita brasileira se prepara para cobrar o
imposto mínimo, cuja arrecadação em 2025 está estimada em R$ 7 bilhões.
Determinar objetivos políticos para
discriminações comerciais tende a provocar o caos no comércio global, embora a
prática exista há tempos, de forma dissimulada. Trump tarifou aço e alumínio de
seus aliados com base em ameaças à segurança nacional. Trump paralisou a OMC em
seu primeiro mandato, e o democrata Joe Biden nada fez para ressuscitá-la.
Agora prepara o longo inverno da organização com tarifas discriminatórias
arbitrárias baseadas no puro poder econômico do maior mercado do mundo.
Os EUA se retirarão do Acordo de Paris
novamente, em grande estilo. O presidente decretou emergência energética, cujo
objetivo deve ser a eliminação de todas as restrições colocadas pelo
“extremismo climático” para a exploração de combustíveis fósseis. A agenda
verde de Biden será dizimada, a começar pelos subsídios aos carros elétricos,
com consequências extensivas à maior parte das energias alternativas. Trump
justificou a necessidade com o álibi de baixar a inflação, causada, para ele,
por gastos públicos exagerados e pela explosão do custo energético. Para os
gastos públicos, criou um Departamento de Eficiência Governamental a cargo do
homem mais rico do mundo, Elon Musk, que começou a fazer cálculos e já diminuiu
a economia prevista pela metade, para US$ 1 trilhão - com forte viés de baixa.
A receita de tarifas mais altas e corte de
impostos é inflacionária e encontra a economia americana em boa forma. Juros
descerão com menor velocidade e o dólar fará a mesma coisa, para cima. Trump
quer reduzir à base de ultimatos o déficit comercial, mas suas medidas tendem a
diminuir a competitividade americana. Talvez isso não faça muita diferença em
seu mundo isolado onde, ao que parece, o que importa é produzir localmente. E,
ao apelar para impostos de importação sobre todas as mercadorias, com fins de arrecadação,
ele pode atrasar o desenvolvimento tecnológico do país, elevar preços e
acumular fracassos na área fiscal.
Além da paranoia sobre “milhões de
criminosos” que serão deportados, Trump fará uma varredura, por seus próprios
critérios, em países que têm “controles deficientes” sobre migração. Tanto
nesse ponto, quanto no da “global tax” e em muitos outros, o Brasil poderá ser
alvo de uma disputa mesmo sem antagonizar os EUA, disposição agora explícita do
presidente Lula. Como todos os países, o Brasil pode ser vítima do torvelinho
“transacional” das exigências americanas.
Trump tem de fazer tudo rápido porque seu
mandato tende a se esgotar em dois anos. Há divergência em sua equipe sobre
timing, magnitude e alvos de tarifas e, com a exígua margem republicana na
Câmara e no Senado, defecções serão fatais. Trump e Musk tentaram eliminar o
limite para a dívida do Estado - algo estranho para quem busca eficiência
governamental - e foram derrotados por revolta de republicanos fiscalistas.
Trump passa a impressão de que tudo pode, mas a realidade é bem diferente.
Ao deixar Acordo de Paris, Trump ameaça a COP
de Belém
Folha de S. Paulo
Dano pode ser mais diplomático que físico;
EUA já vêm reduzindo emissões, mas dão pretexto para inação de demais países
Um exemplo cabal do conflito ideológico
nos Estados
Unidos está no vaivém de seu governo quanto ao Acordo de
Paris. Em 2017, no primeiro mandato, Donald Trump retirou
o país do tratado. Em 2021, Joe Biden retornou,
mas o
presidente ora reempossado volta a abandonar o acordo.
A defecção da nação mais poderosa do mundo
abre flanco pernicioso na já claudicante negociação para conter o aquecimento
da atmosfera e aumenta o pessimismo com resultados na próxima cúpula do clima,
a COP30 a
realizar-se em Belém (PA).
O dano ao processo poderá ser mais
diplomático que físico. Afinal, a economia dos EUA já observa trajetória de
redução de emissões de carbono que o voluntarismo de Trump pode até frear ou,
mais dificilmente, reverter. Dará, contudo, pretexto para outros 194
signatários continuarem a nada resolver.
Não que a contribuição americana para agravar
a crise do clima seja pequena. Os EUA são o segundo maior poluidor mundial, com
produção anual de 4,9 bilhões de toneladas equivalentes de CO2 (GtCO2eq, medida
que reduz a denominador comum todos os gases do efeito estufa).
Isso corresponde a 13% do total emitido no
planeta e a uma das maiores taxas per capita, de 14 toneladas a cada ano. A
campeã absoluta, China, emite 12,7
GtCO2eq, 33% em termos globais, mas no cálculo por habitante fica aquém (9
toneladas).
Do Rio (1992) a Paris (2015), as tratativas
se basearam no princípio de que países desenvolvidos fariam esforço maior para
diminuir o impacto do aquecimento. Por isso a China só se comprometeu com
atingir um pico de carbono antes de 2030 e então começar a reduzir emissões
para alcançar neutralidade até 2060.
Os EUA tinham meta mais estrita: cortar, até
2025, de 26% a 28% sobre os níveis de 2005. Como o país emitia cerca de 6
GtCO2eq há duas décadas, os percentuais se traduzem em 4,4 a 4,3 GtCO2eq —não
tão longe das 4,9 GtCO2eq atuais, ainda que na prática descumprindo o
compromisso agora abandonado.
Há incerteza também sobre as metas de outras
nações, dado que o Acordo de Paris não prevê sanções. Alguns signatários adotam
compromissos em aparência ambiciosos, porém demasiado flexíveis, como o Brasil:
59% a 67% de redução até 2035 sobre 2005, com margem ampla para computar
captura de carbono de recuperação florestal.
Resulta daí a baixíssima probabilidade de não
ser ultrapassado o limite fixado na capital francesa de 1,5ºC de aquecimento.
Mesmo que se cumpram todos os compromissos nacionais, sobrariam depois de 2030
meras 70 GtCO2eq para emitir com queima de combustíveis fósseis.
A cifra equivaleria a apenas dois anos de
emissões, o
que tornaria inexequível alcançar a neutralidade até 2050. Mais, ainda, com
carta branca de Trump para novos poços de petróleo e
desinvestimento em energias limpas.
É preciso mais transparência sobre a crise
yanomami
Folha de S. Paulo
Governo divulga só dados parciais da ação de
emergência na terra indígena em 2024; combate ao garimpo deve ser contínuo
Na segunda (20), o estado de emergência
em saúde pública
na Terra Indígena Yanomami, que
se espalha por Amazonas e Roraima, completou dois anos. Segundo dados parciais
disponíveis, houve melhora nos indicadores.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), porém,
ainda apresenta problemas na publicidade das informações, que afetam a
transparência das políticas públicas implementadas na localidade.
Até aqui, o Ministério
da Saúde apresentou apenas
os números referentes até o primeiro semestre de 2024. Tal opacidade já se
verifica desde o ano passado.
Em 2023, a pasta liberou boletins diários até
março e semanais até agosto, quando os documentos passaram a ser mensais. Em
fevereiro do ano passado, a divulgação foi suspensa.
Com as informações disponíveis, constata-se
que foram registradas 155 mortes de yanomamis de janeiro a junho de 2024, ante
213 no mesmo período do ano anterior, o que representa uma queda relevante de
27%.
O número total de óbitos em 2023 (363)
superou o de 2022 (343), mas é possível que subnotificações sob a gestão
de Jair
Bolsonaro (PL),
que estimulou a expansão do garimpo na
região, tenham afetado esse indicador.
Na comparação entre os seis primeiros meses
de 2023 e 2024, os casos atestados de malária passaram de 14.450 para 18.310,
fenômeno que pode estar relacionado à alta de 73% nos exames para detectar a
doença, que chegaram a 136 mil no ano passado.
A extração ilegal de ouro é a principal causa
da tragédia yanomami, já que a atividade polui rios com mercúrio, impedindo a
pesca e gerando intoxicações, e devasta florestas, o que contribui para a
proliferação do mosquito transmissor da malária.
No primeiro ano das ações emergenciais, a
área de garimpo oscilou entre fases de redução e expansão. De acordo com os
dados oficiais divulgados, de março a dezembro de 2024 o indicador despencou,
indo de 4.570 hectares para 313.
É dever do poder público divulgar números
completos sobre sua atuação contra a crise sanitária na terra yanomami.
Ademais, mesmo que a situação emergencial
venha a ser superada, é preciso manter políticas integradas de longo prazo para
combater o garimpo. A fiscalização deficiente e a impunidade são alguns dos
gargalos, como mostram dificuldades enfrentadas pelo Ibama em
logística e na
cobrança de multas.
Para um governo que pretende ser referência
na área ambiental, é o mínimo a ser feito.
Governo vira comitê de campanha
O Estado de S. Paulo
Lula diz a ministros que ‘a campanha já
começou’ e cobra resultados prometidos, mas, com inflação e amarras fiscais,
será difícil. Resta a carta fraudulenta da ‘defesa da democracia’
O presidente Lula da Silva avisou formalmente
seus auxiliares na primeira reunião ministerial do ano que todo o seu governo
deve começar já a trabalhar por sua campanha à reeleição, em 2026. E o fez sem
rodeios nem ambiguidades: “O que eu quero dizer para vocês é que 2026 já
começou”.
A bem da verdade, Lula já está em campanha há
muito tempo, mas agora é oficial – e, claro, tudo por culpa da oposição: “Pelos
adversários, a eleição já começou. É só ver o que vocês assistem na internet
para vocês perceberem que eles já estão em campanha”.
Como tudo o que envolve Lula, há obviamente
um bocado de mistificação. O que o petista chama de “campanha eleitoral” da
oposição nada mais é do que a exploração política dos inúmeros erros do
governo, o que é a essência do embate democrático.
E Lula parece ter entendido que está perdendo
esse embate – e de lavada. O já antológico caso da “taxação do Pix”, que
humilhou o governo nas redes sociais e fora delas, é apenas o sintoma de
problemas muito maiores, alguns dos quais diagnosticados pelo próprio
presidente na reunião.
Não é só que, dois anos depois da posse, “a
entrega que fizemos para o povo ainda não foi a entrega que nos comprometemos a
fazer em 2022”, como disse Lula. A verdade é que o presidente a esta altura
parece saber que não tem condições de “entregar” o que prometeu porque os
compromissos fiscais assumidos pela equipe econômica, ainda que frouxos,
limitam o uso da máquina do Estado para conquistar votos. A não ser que Lula
resolva mandar às favas os escrúpulos fiscais, como já fez em seu mandato
anterior, será difícil desfazer a sensação de impotência.
Sem o dinheiro farto da era de ouro do
lulopetismo, duas décadas atrás, resta a Lula caprichar na propaganda, e foi
por isso que transformou um marqueteiro profissional em um de seus principais
ministros. Por mais competente que possa ser o referido marqueteiro, porém, não
há como convencer os brasileiros de que a vida melhorou sob Lula quando os
preços não param de subir, contrariando a famosa promessa de campanha petista
segundo a qual o povo voltaria a comer picanha e tomar uma cervejinha. Lula
parece saber disso e, na reunião, admitiu que “os alimentos estão caros” e que
“é uma tarefa nossa fazer com que os alimentos cheguem baratos à mesa do
trabalhador”. A julgar pelo que conhecemos do lulopetismo, a ordem cheira a
intervenção do Estado na formação de preços, o que quase sempre resulta em
desabastecimento e mais inflação.
O fato relevante, contudo, é que Lula parece
ter entendido onde o calo está apertando. O presidente admitiu que ele e seu
governo estão desconectados dos anseios da população. “O povo com que estamos
trabalhando hoje não é o povo dos anos 1980, que queria ter emprego com
carteira assinada. É um povo que está virando empreendedor e precisamos
aprender a trabalhar com essa nova formação do povo brasileiro”, afirmou o
petista.
Sabe-se lá o que Lula pretende fazer para que
esses “empreendedores” deixem de vê-lo como o símbolo de um Estado glutão que
cobra muito, entrega pouco, atrapalha bastante e está a serviço de castas e
companheiros. Ninguém é bobo: quando Guilherme Boulos, candidato de Lula na
recente eleição à Prefeitura de São Paulo, posou de amigo dos “empreendedores”,
levou uma surra nas urnas. O mesmo provavelmente se dará com o próprio Lula:
como disse o ideólogo petista André Singer em entrevista à BBC Brasil, “o PT não
pode aderir a uma ideologia do empreendedorismo do salve-se quem puder”, porque
“isso é contra seus próprios princípios” e “é contra aquilo que ele veio propor
para a sociedade brasileira”. Ou seja, a adesão do lulopetismo ao
empreendedorismo vale tanto quanto uma nota de três reais, e não há
ministro-marqueteiro que mude isso.
Diante desse cenário, resta a Lula a carta
fraudulenta da defesa da democracia contra o bolsonarismo. O petista deixou
isso claro na reunião: “Precisamos dizer em alto e bom som, queremos eleger
governo para continuar o processo democrático do País, não queremos entregar
esse país de volta ao neofascismo, neonazismo, autoritarismo”. Soa como
desespero, mas é só o velho Lula de sempre.
A hora do bom combate político nos EUA
O Estado de S. Paulo
Não se pode subestimar a ameaça autoritária
de Trump, mas a democracia americana é vigorosa o suficiente para lhe impor
limites. Resta à oposição provar que pode fazer melhor que ele
A ameaça que o presidente dos EUA, Donald
Trump, representa à democracia é real. Ninguém pode duvidar de seus instintos
autocráticos, amplamente comprovados por sua atitude antidemocrática de não
reconhecer o resultado das eleições de 2020, chantageando autoridades estaduais
para revertê-lo e incitando militantes a invadir o Capitólio para impedir a
ratificação da vitória do democrata Joe Biden. Ele nunca se retratou disso e
afirma ainda hoje que as eleições foram roubadas. Um de seus primeiros atos em seu
segundo mandato foi perdoar os invasores condenados pela Justiça – ou, como ele
diz, “prisioneiros políticos”, num escárnio à democracia e ao Estado de
Direito.
Agora ele tem mais poder do que nunca e
também mais experiência. O Partido Republicano está mais ideologicamente
alinhado e em grande medida se transformou num culto à personalidade. Até
oligarcas das big techs outrora críticos agora fazem o beija-mão.
Trump começa seu mandato com maioria nas duas Casas parlamentares e uma Suprema
Corte com uma maioria conservadora de 6 contra 3. Ele preencheu seu gabinete
com ferozes militantes para combater e aniquilar os “inimigos internos”. “Sua
indiferença em relação aos valores americanos farão de 2025 e os anos
subsequentes uma temporada aberta de vandalismo político”, resumiu a
consultoria de risco político Eurasia.
Mas, se não se deve subestimar os riscos,
tampouco se deve subestimar a resiliência da democracia americana.
Considerem-se os últimos 20 anos. A
presidência mudou de controle partidário quatro vezes, a Câmara dos Deputados
mudou quatro vezes e o Senado, também quatro vezes. Pela primeira vez em 120
anos, os partidos incumbentes perderam três eleições presidenciais
consecutivas: 2016 (democratas), 2020 (republicanos) e 2024 (democratas). Isso
não significa que os eleitores tenham mudado suas posições ideológicas, sobre,
por exemplo, o aborto ou o tamanho do Estado, mas sim que rejeitaram
governantes que não entregaram os resultados prometidos.
Trump cultiva uma imagem de “rolo compressor”
eleitoral, mas ele perdeu a disputa de 2020 e acumulou derrotas nas eleições de
2018 e 2022. Agora, ele tem maioria na Câmara, mas é a mais estreita em 100
anos, e começa o seu segundo mandato já com uma das mais altas taxas de
impopularidade para um presidente em seu primeiro ano.
A blitzkrieg de decretos em seu
primeiro dia foi estonteante, mas muitas das promessas de campanha de Trump –
incluindo as mais críticas relativas à imigração, tarifas ou energia – não
poderão ser cumpridas sem uma legislação do Congresso. A maioria dos senadores
republicanos chegou ao Congresso antes de 2017. Já o seu primeiro nomeado para
o Departamento de Justiça caiu por resistência de republicanos moderados antes
mesmo de ser submetido à aprovação do Senado, e outras indicações exóticas
encontram dificuldades.
O apelo a ordens executivas para superar
impasses no Congresso tem crescido desde a gestão de Barack Obama, mas a
estratégia tem sido em grande medida frustrada pela Justiça. Ainda neste mês, a
Suprema Corte recusou um recurso de Trump para barrar uma sentença de um
tribunal em Nova York que o acabou sentenciando como culpado por fraudar
registros contábeis.
Sem dúvida a eleição de Trump exprime um
resgate de anseios conservadores clássicos no eleitorado americano: a
desconfiança do big government, do intervencionismo estrangeiro, do
identitarismo, e o desejo de políticas pró-família, de uma rede mínima de
seguridade social, de políticas de imigração disciplinadas, da meritocracia.
Mas, a julgar pelo seu primeiro mandato, Trump é a resposta errada a perguntas
certas, e faltam-lhe a coerência e a disciplina para implementar essas
políticas. Agora, ele tem só dois anos e uma margem estreita no Congresso antes
de enfrentar o veredicto popular.
A oposição precisará fazer a sua própria
lição de casa. O alarmismo e a demonização falharam. Se Trump é a resposta
errada, os democratas ainda precisam provar que têm a certa.
“São ações, não palavras que contam”, disse
Trump em seu discurso de posse. Isso é verdade para ele, e também para a
oposição. O tempo dos discursos acabou. Começa agora a temporada aberta da
política.
O ministro sem senso de humor
O Estado de S. Paulo
Alexandre de Moraes leva a sério livro que
satiriza Eduardo Cunha e decide que ninguém pode lê-lo
Um espírito censório vaga pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) com desassombro poucas vezes visto sob a égide da
Constituição de 1988. Têm sido recorrentes decisões de ministros do STF que
cerceiam a liberdade de expressão de cidadãos nas redes sociais, tolhem a
publicação de material jornalístico e tiram de circulação livros técnicos ou
artísticos. Tudo, claro, sob a iluminação das mais nobres intenções de Suas
Excelências – aquelas das quais o inferno está cheio.
Há poucos dias, mais um ato de censura
praticado pela Corte responsável pela guarda da “Constituição Cidadã” veio a
público, mostrando que o STF parece disposto a abastardá-la no que a democracia
tem de mais sagrado.
Em decisão monocrática, o ministro Alexandre
de Moraes atendeu a um pedido do notório Eduardo Cunha e ordenou que o
livro Diário da Cadeia, escrito por Ricardo Lísias sob o pseudônimo
“Eduardo Cunha”, fosse retirado de circulação. Simples assim. Moraes ainda
condenou o autor da obra, a Editora Record e Carlos Andreazza – colunista deste
jornal e, à época da publicação, em 2017, diretor Editorial do Grupo Record – a
pagarem uma indenização de R$ 30 mil ao ex-presidente da Câmara dos Deputados.
O livro, escancaradamente satírico, já
apresenta desde a capa, em letras garrafais, a informação de que “Eduardo
Cunha” é um pseudônimo do autor. Ademais, ao longo da obra, publicada quando
Cunha estava preso no âmbito da Lava Jato por suspeita de exigir e receber US$
5 milhões de propina em contratos da Petrobras, fica evidente para qualquer
pessoa alfabetizada que não se trata de um livro escrito pelo verdadeiro Cunha,
mas sim de uma paródia sobre como seriam os dias de cárcere de uma
personalidade pública que teve papel destacado na história recente do País.
Ou seja, além de censura, a caneta do sr.
Moraes também veio carregada com tintas de preconceito ao supor que os leitores
seriam estúpidos a tal ponto que nem sequer poderiam distinguir entre realidade
e ficção, donde o acesso à obra deveria ser proibido.
Para o ministro, tido como a epítome da
defesa da democracia no País, as liberdades de expressão e criação dos
responsáveis pelo livro colidiram, ora vejam, com a proteção à honra de Eduardo
Cunha. E, diante desse suposto conflito, Moraes não teve dúvidas: optou por
Cunha. Dado seu histórico nada abonador, nem o próprio Eduardo Cunha foi tão
zeloso com sua reputação como foi o ministro Moraes. Como se a censura já não
fosse grave por si só, o ministro ainda ignorou a jurisprudência do STF, que
relativiza o direito à intimidade de personalidades públicas.
Havia outras medidas mais equilibradas e
coadunadas com as liberdades democráticas que o sr. Moraes poderia ter tomado
antes de tirar uma obra artística de circulação, ato violento em qualquer
democracia digna do nome. Ele poderia, por exemplo, ter exigido divulgação
ainda maior da informação de que o nome “Eduardo Cunha” é um pseudônimo,
malgrado, como foi dito, a palavra vir impressa em caixa alta desde a capa do
livro.
Agora, restam o recurso e a dúvida: quem no
STF haverá de censurar o censor?
O conflito que expõe o cidadão no trânsito
Correio Braziliense
Empresa de transporte privado de passageiros
por aplicativo desafia a lei e o poder público para iniciar operação com
motocilcistas em São Paulo, ignorando o bem-estar coletivo
Há cerca de uma semana, uma das gigantes do
setor de transporte privado de passageiros por aplicativo iniciou sua operação
com motociclistas em São Paulo. A estratégia desafia a prefeitura local, que se
posiciona contra o serviço, resguardada por um decreto proibitivo assinado pelo
prefeito Ricardo Nunes (MDB) em 2023. No frigir dos ovos, o que se desenha é
uma situação conhecida aos olhos da opinião pública: uma empresa de tecnologia
coloca a lei à prova para ampliar seu mercado, a partir de uma guerra judicial
e midiática que ignora o bem-estar coletivo.
Por um lado, a empresa oferece um serviço
rápido e barato, capaz de seduzir o trabalhador sufocado pelo já conhecido caos
do trânsito de São Paulo. O transporte com motos por aplicativo resolve dois
problemas de quem perde horas com o vai e vem nas grandes cidades: diminui o
tempo perdido no transporte público e oferece um custo-benefício superior aos
abarrotados ônibus e metrôs.
Por outro, está em jogo a segurança viária. É
provado, estatisticamente, que os motociclistas integram a maior parte das
vítimas do trânsito nas grandes cidades brasileiras. Em Belo Horizonte, por
exemplo, quase 60% dos acidentes com morte no ano passado envolveram o veículo
sobre duas rodas. Foram 89 registros diferentes, uma média de uma vida perdida
a cada quatro dias. Os dados são da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança
Pública (Sejusp). No primeiro semestre de 2024, em média, seis motociclistas
morreram, por mês, vítimas de sinistros nas vias da capital do país, segundo os
dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF).
Apesar da queda de braço momentânea, o
histórico mostra que os embates entre o poder público e a iniciativa privada,
no Brasil, terminam em goleada a favor das empresas de tecnologia. O relatório
Caminhos do Trabalho — feito pelo Fundacentro, do Ministério do Trabalho e
Emprego, em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) — mostra que
25% dos entregadores de aplicativo entrevistados em 2023 relatam ter sofrido
algum acidente durante o exercício da profissão.
Ainda assim, esse tipo de serviço opera
normalmente no Brasil, a partir de uma explosão da demanda após a pandemia da
covid-19. Ou seja, mesmo com os riscos comprovados em gênero, número e grau, as
empresas mantêm suas atividades, a partir do lobby do setor e também de uma
pressão da opinião pública, que faz questão de usar o serviço por sua
comodidade e custo-benefício.
Em São Paulo, no último capítulo da batalha
judicial, a Justiça autorizou o Executivo a fiscalizar os motociclistas da
plataforma. A cidade garante ter apreendido dezenas de veículos do tipo por
irregularidades, enquanto a empresa informa que pagará todas as multas dos seus
cadastrados. A estratégia é clara: desgastar o poder público e conseguir o
direito de operar "na marra".
Se os problemas e as vantagens do transporte
de passageiros por motos estão claros, qual a saída para o desafio apresentado?
A resposta requer debate entre as diferentes partes envolvidas, com via livre,
principalmente, para os especialistas em trânsito. A regulamentação precisa
considerar os aspectos técnicos, trabalhistas, econômicos e sociais. Todos
devem ser ouvidos para se chegar a um denominador comum.
Algumas medidas, porém, têm necessidades
cristalinas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade
máxima das vias deve ser de 50km/h. Diante da possibilidade razoável de
sufocamento do sistema público de saúde por causa dos acidentes com
motociclistas, urge que as empresas criem mecanismos para que seus prestadores
de serviço respeitem a velocidade máxima das vias — razão principal de
ocorrências graves, como mostrou o Estado de Minas em sua recente série de
reportagens Vítimas da velocidade, publicada no início do mês.
Além disso, é preciso olhar para regras que
funcionam em outras metrópoles ocidentais. Em Nova York, quando se olha para a
questão do delivery, a regulamentação obriga as empresas a pagarem um valor
mínimo aos trabalhadores do setor, uma medida que ameniza o pé pesado no
acelerador, dentro da ótica de que "tempo é dinheiro".
Seja qual for o resultado da queda de braço em São Paulo, a resposta não pode passar pelo paliativo. Trata-se de uma questão grave para a saúde pública e sintomática da sociedade informatizada, que, cada vez mais, procura comodidade aliada ao menor custo.
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