domingo, 9 de janeiro de 2011

O cortejo do atraso::Marco Nobre

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

Para filósofo que cunhou o termo ‘peemedebismo’, Dilma Rousseff moldou, no Ministério das Minas e Energia, o modelo de aliança PT–PMDB – e essa é a razão pela qual Lula a escolheu sua sucessora.

Ivan Marsiglia

O queixume entreouvido nos bastidores do governo logo evoluiu para um desavergonhado bate-boca. Primeiro, o PMDB se ressentiu da perda de espaço no primeiro escalão, com ministérios relevantes como o das Comunicações e da Saúde subtraídos da cota do principal partido aliado da presidente Dilma Rousseff e entregues, respectivamente, aos petistas Paulo Bernardo e Alexandre Padilha. Depois, a cúpula não se conformou com a troca de mãos das joias do segundo escalão das duas pastas, os Correios e a Funasa.

E o novo ministro teve de ouvir uma espécie de “vai para casa, Padilha” do líder peemedebista na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN): “Parece que vocês não aprenderam com o mensalão. Depois não venham correr atrás do PMDB para resolver os problemas”.

A temperatura na formação de novos governos é tradicionalmente quente na história política brasileira, afirma o filósofo e coordenador do Núcleo Direito e Democracia, do Centro Brasileiro de Planejamento e Análise (Cebrap), Marcos Nobre. “Ministros se xingavam em público na composição da equipe do primeiro mandato do Fernando Henrique, em 1995”, lembra esse paulistano de 45 anos, doutor pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doc na Universidade de Frankfurt, Alemanha. Mas Dilma deve estar atenta, diz, pois o xadrez da partilha de cargos pode complicar.

Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp), Nobre tem se dedicado ao estudo de um fenômeno singular da cultura política brasileira, o “peemedebismo” – espécie de consenso conservador, feito para acomodar todo o mundo e deixar tudo como está. Em artigo publicado na revista Piauí, Nobre sustenta que, diante de tal traço de continuidade na política brasileira, nem o Plano Real de FHC nem o “lulismo” descrito pelo cientista político André Singer podem se apresentar como grandes novidades.

Na entrevista a seguir, o filósofo defende que a polarização política é necessária ao funcionamento da democracia no Brasil. Afirma que o modelo da aliança PT–PMDB começou no programa Luz Para Todos, do Ministério das Minas e Energia, sob a batuta de Dilma – sendo essa a principal razão da escolha de Lula por ela. E alerta: a nova presidente terá dificuldades para lidar com um aliado que promete governabilidade, mas pode entregar a paralisia do País.

A primeira crise entre PT e PMDB já nos primeiros dias de governo o surpreendeu?

Nem um pouco. Mas é bom distinguir o que é tendência de curto prazo do que é mais longo. Todo governo que se instala passa por isso: se você lembrar a composição da equipe do primeiro mandato do Fernando Henrique, em 1995, em janeiro os ministros se xingavam em público. E a verdade é que Dilma foi muito inteligente em usar Lula como escudo na negociação. Ao deixar circular que foi ele quem “sugeriu” tais e tais nomes, emplacou na verdade os que ela queria. A discussão de cargos é apenas uma primeira etapa. Nos próximos três ou quatro meses é que vamos ver fechar o círculo central do poder. Aí, ou Dilma terá repactuado sua relação com o PMDB ou terá sérios problemas em seu governo.

O que achou da formação do ministério?

Até agora, o perfil se parece com o do governo Lula 1: com peso muito forte do PT. Minha impressão é que, cedo ou tarde, Dilma terá que entregar ao PMDB o que ele pede.

A temperatura entre aliados subiu mais por causa da Funasa e dos Correios, áreas historicamente apontadas como focos de corrupção. É por acaso?

Nem um pouco. Quando Dilma disse querer pessoas com currículo imaculado para esses postos, ecoava uma decisão política que tomou com Lula no fim do governo. O fato de Paulo Bernardo ter ido para as Comunicações e Padilha para a Saúde tem a ver com isso. Alguém tinha que controlar os Correios, pois de lá saíram todas as crises do governo Lula, do mensalão ao caso Erenice. Na Funasa, não estourou nada ainda. Mas o passado, com máfia dos sanguessugas, etc, mostra que é área delicada.

O sr. escreveu um artigo em que diz estarem errados tanto os acadêmicos tucanos, quando dizem que o Plano Real marcou um novo período da política brasileira, quanto o cientista político petista André Singer, que aponta o ‘lulismo’ como novidade. Por quê?

Porque há um movimento mais fundo na política brasileira, que vem desde a redemocratização, e trava a polarização necessária para que o sistema funcione. A democracia necessita de polarizações políticas consistentes, não apenas episódicas. Durante a redemocratização, os militares conduziram a transição. Havia, nos anos 80, uma pressão enorme da sociedade civil por participação, mas não se criaram instituições que pudessem dar vazão a ela. E passamos de uma situação de travamento total, com a hegemonia do PMDB, para o cesarismo alucinado do Collor. Dois extremos.

Essa polarização não se recolocou em seguida ao impeachment de Collor?

Sim, e foi o Plano Real, ainda no governo Itamar, que organizou isso. Quando Erundina é convidada a participar do governo e o PT recusa, opta pela oposição. Surgem dois polos que enfraquecem o ‘peemedebismo’.

O que é exatamente o peemedebismo?

É uma cultura política que tem como características estar no poder – igualar sobrevivência política com adesão a quem estiver no governo – e não ter consistência ideológica, um discurso completamente anódino, que qualquer um pode subscrever. É um sistema de gerenciamento de interesses no qual, como ninguém formula nada muito precisamente, todo mundo pode entrar. Fazer política dentro do peemedebismo significa receber direito de veto sobre algumas questões: a bancada evangélica pode vetar qualquer coisa que diga respeito à religião; a ruralista, questões relativas à terra; e assim por diante.

Se o Plano Real criou uma polaridade que enfraqueceu o peemedebismo, por que o sr. diz que o plano não representa novidade?

Porque não superou o peemedebismo, apenas o reorganizou, produzindo a polarização que durou alguns anos. De um lado, o PSDB e o então PFL; de outro, o PT e seus satélites. Tudo que fica no meio é o peemedebismo, que volta agora com força.

E os oito anos de governo Lula, trouxeram algo de novo em relação a esse consenso conservador?

O peemedebismo é extremamente conservador, como eu disse, pois você só consegue fazer transformações desviando-se dos vetos. Quando um projeto vai para o Congresso, tudo que for matéria de veto nem se discute, simplesmente tira-se do projeto. Por isso Lula optou por apresentar políticas que podiam até ser questionadas, mas não sofreriam veto – como o Bolsa-Família e os aumentos sistemáticos no salário mínimo, que os tucanos consideravam impossíveis. O combate à pobreza, contra o qual ninguém pode ser contra, é o que Lula introduziu de novo no tripé de FHC: câmbio flutuante, superávit fiscal e política de juros.

Então a frase dita por FHC, de que resta aos governos progressistas no Brasil atuar como ‘vanguarda do atraso’, está correta?

Fernando Henrique pegou essa frase do ex-ministro da Justiça de Sarney, Fernando Lyra, que a disse da tribuna da Câmara, em 1986. É uma expressão incrível. E de uma época em que, suprema ironia, Sarney é que era refém do PMDB...

Essa cultura do peemedebismo vai além do partido PMDB?

O PMDB é como se fosse a ponta do iceberg do peemedebismo. Este é um fenômeno de longo prazo, que vai além da agremiação partidária. Para mim, por exemplo, Aécio Neves é uma das maiores expressões do peemedebismo. O que ele tem para dizer? Nada. Seu discurso é anódino e ele nunca tem uma posição contra alguma coisa. Por isso é fácil imaginar que se o PSDB não deixá-lo se candidatar à Presidência, Aécio vai procurar outra opção partidária.

A presença do PMDB no governo petista é comparável à do ex-PFL nos anos FHC?

O PFL aceitou a liderança ideológica e a direção de governo do PSDB. O PMDB tende a ter o mesmo papel, mas até o momento não se submeteu. Por isso digo que, ou Dilma consegue renegociar os dividendos políticos com o PMDB, ou o partido não vai aceitar a liderança petista no governo. Veja que a presidente elencou dois projetos prioritários para o seu mandato: erradicar a miséria e fazer o plano nacional de banda larga. O acordo fechado entre os dois partidos é que desses dois projetos Dilma cuidará de perto, sem interferências – embora o PMDB possa até partilhar dividendos políticos. O problema é que ela ainda tem uma Copa do Mundo e uma Olimpíada para organizar, que poderão servir como matéria de chantagem por parte do PMDB.

Como esse acordo foi fechado?

O padrão de relacionamento entre o PT e o PMDB começou no Ministério das Minas e Energia, com Dilma. Quando a então ministra montou o Luz Para Todos, a liderança, a formulação do projeto e sua implementação ficaram com ela – mas o dividendo político, os louros do negócio, seriam dos prefeitos do PMDB. Porque o que o PMDB quer é aquele pequeno serviço ou obra pública no município que o prefeito da sigla possa vender como seus. Então, havia uma certa divisão do butim. Em minha opinião, foi por isso que Lula escolheu Dilma como candidata a sua sucessão: ele viu que ela era capaz de negociar com o PMDB.

Isso não está parecendo tão fácil agora...

Neste momento, essa divisão que funcionava está em causa. O que Dilma quer é reestabelecer um tipo de relação com o partido aliado nos moldes da que havia no programa Luz Para Todos.

Por que o sr. diz que, após o mensalão, as alianças que Lula formou tornaram ‘quase impossível’ a vida de um oposicionista?

Muitos dizem que o PSDB e o DEM não souberam fazer oposição a Lula. É um engano, pois o problema é estrutural. Diante do predomínio desse centro conservador, a polarização que tínhamos no Brasil durante os anos FHC só funcionava porque havia um partido com vitalidade bastante para permanecer na oposição por muito tempo, o PT. Quando ele vai para o governo e, após a crise do mensalão, compõe com esse centro, enfraquece a polarização.

É isso que explica a permanência de Sarney na presidência do Senado, apesar dos protestos da sociedade e da imprensa?

Exatamente. Sarney é o símbolo do peemedebismo: tem doutorado, livre-docência e titularidade sobre seu funcionamento. E esse predomínio do peemedebismo pode levar a um fechamento do sistema político para a sociedade. Veja a sucessão de crises e seus efeitos cada vez menores: primeiro Collor é derrubado por impeachment, depois ACM e Jader Barbalho são obrigados a renunciar, então Renan Calheiros deixa a presidência do Senado, mas não renuncia e, por fim, Sarney nem sai da presidência nem renuncia. A gente pode gritar quanto quiser porque o sistema está começando a se fechar em si mesmo, está em divórcio muito grave com a sociedade. O que esse sistema político diz? “Enquanto estivermos nesta bonança econômica podemos dar uma banana para a relação com a sociedade.” Agora, uma coisa é fazer isso com um líder popular como Lula mediando as demandas. Outra é com Dilma.

Dilma tem espaço para escapar desse arranjo que atrasa a modernização do País?

Que Dilma pode escapar, pode. Mas as opções que ela tem são muito restritas. É provavelmente a presidente com possibilidades mais restritas que já assumiu. Do ponto de vista político, as mãos dela estão acorrentadas. E a verdade é que, hoje, o jogo não se dá mais entre governo e oposição: ele migrou para dentro do governo.

O peemedebismo pode ser superado?

Não por acaso, Lula saiu do poder dizendo que sua prioridade é juntar lideranças para propor a reforma política. O ex-presidente não é a pessoa mais indicada para encaminhá-la, mas ela é necessária. Temos de produzir um sistema político que permita a polarização, no qual quem governa não seja engolido pela peemedebização. Para isso, não há receita, mas é preciso que o debate – da cláusula de barreira ao financiamento de campanha, por exemplo – seja pautado por esse objetivo. Senão, vamos continuar em uma democracia que patina, discute assuntos tópicos de maneira acalorada, mas não avança em reforma alguma nem desenvolve sua cultura democrática.

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