terça-feira, 5 de maio de 2009

O ciclo da oligarquia

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O escândalo das passagens aéreas (inicialmente criadas para que os parlamentares pudessem desempenhar seus mandatos, mas depois apropriadas como forma de salário indireto) expõe com clareza a desvirtuação oligárquica a que estão sujeitas todas as organizações - até mesmo aquelas supostamente expostas ao escrutínio público e à (supostamente saneadora) competição entre adversários. O fato de que o desvio de finalidade no uso desse recurso de trabalho atingiu indistintamente a praticamente todos os partidos é ainda mais revelador: políticos de direita e de esquerda, do alto e do baixo clero, governistas e oposicionistas, fisiológicos assumidos e paladinos da ética, quase ninguém escapou (ou deixou de ser descoberto).

Uma interpretação possível (e acertada) de tal situação é que, se o problema é generalizado, o problema não é de conduta individual, mas do funcionamento da instituição. Mas o fato do problema ser institucional não atenua o problema; na realidade o agrava. Afinal, neste caso, como não foi um ou outro parlamentar que optou por dar aos recursos públicos finalidade distinta daquela esperada no desempenho de sua função, mas foi a instituição que viabilizou que tal coisa ocorresse, não é este ou aquele parlamentar que é corrupto - é a instituição que é corrupta. Ou seja, contamos no Brasil com um Poder Legislativo que tem na malversação de recursos públicos um traço institucional. Ele se constituiu no que podemos denominar como uma instituição oligárquica - ainda que composta não apenas por oligarcas.

Alguns dos que contribuíram para a construção de tal cenário são oligarcas notórios, inclusive em seus Estados, como é o caso do atual presidente do Senado. Daí, nada mais natural que imprimissem à direção da Casa a marca de sua feição política. Todavia, a oligarquização do parlamento ultrapassa a mera vontade política de seus dirigentes circunstanciais. Ela na verdade decorre de um perverso processo de degeneração institucional que, primeiramente, propicia uma seleção adversa de elites políticas: correspondendo fielmente ao modelo segundo a qual a forma degenerada da aristocracia (governo dos melhores) é a oligarquia, nossas instituições políticas selecionam uma escória para a ocupação dos postos de representação - gerando um governo dos piores.

E isto gera um ciclo vicioso composto de três processos encadeados: (1) o sistema de representação recruta os piores; (2) com isto percebe-se a política como uma atividade vil; (3) consequentemente, afastam-se da atividade política aqueles que poderiam de fato constituir uma aristocracia eletiva e responsável perante o eleitorado - reforçando-se o primeiro processo.

Em decorrência de sua lógica de auto-reforço, este ciclo oligárquico cria um equilíbrio do qual dificilmente se escapa, exceto por algum influxo exógeno. Por esta razão não é de surpreender que as muitas reformas políticas em tramitação no Congresso sempre naufraguem - ou avancem apenas de forma milimétrica em momentos de crise, de modo a desanuviá-la. Como a mudança das regras do jogo que propiciam esse ciclo vicioso é possível apenas pela ação da oligarquia que delas se beneficia, o sistema não muda - exceto se submetido a drásticas pressões externas que ameacem a sobrevivência política da própria instituição ou de seus membros.

Um possível remédio para este ciclo oligárquico seria a competição entre os membros da classe política. Todavia, mesmo a disputa política acerba pode ser insuficiente para conter a oligarquização. Isto porque a competição política acontece num âmbito limitado, fora do qual estão certos procedimentos e valores necessários à continuidade do jogo. Num regime liberal-democrático estão fora da disputa (e, portanto, são mantidas) as regras que asseguram que a competição política seja assegurada - a alternância no poder, as liberdades de organização e expressão, os direitos de votar e ser votado, o direito de crítica etc. Já num regime oligárquico, estão fora da disputa, sendo preservadas, as regras que asseguram aos membros da oligarquia benefícios inacessíveis aos que estão fora dela - os cidadãos comuns. Assim, embora a oposição critique o governo, tanto membros situacionistas como oposicionistas concordam em preservar seus privilégios como membros da classe política. O mesmo vale para as polarizações entre esquerdistas e direitistas, alto e baixo clero e - por incrível que seja - entre os fisiológicos e os paladinos da ética.

E, como os regimes liberal-democrático e oligárquico coexistem em nosso país, a disputa travada entre partidos e lideranças políticas preserva as condições não apenas do jogo democrático, mas também do jogo oligárquico. Desse modo, há pouca coisa que o cidadão-eleitor possa fazer para afastar dos postos de representação aqueles que não se conduzem de acordo com os princípios republicanos - ou seja, os oligarcas. Embora dentre as muitas opções político-partidárias disponíveis estejam alternativas ideológicas, programáticas e societárias consideravelmente distintas, praticamente não existem escolhas que permitam escapar à oligarquia. Em suma, o acordo constitucional (não escrito) que sustenta nosso sistema político comporta não apenas as condições basilares de um Estado Democrático e Social de Direito, mas também as de uma "estrutura institucional oligárquica" que salvaguarda os interesses específicos da classe política como grupo cujo atendimento se dá a expensas do resto da sociedade e contra os interesses e valores desta.

Somente um forte influxo externo à classe política sobre as instituições de representação teria condições de romper com este ciclo da oligarquia. Se este influxo for de natureza autoritária, o risco é o de que a oligarquização se agrave ainda mais, mesmo que com outros oligarcas. Para que a oligarquização seja superada, esse influxo precisaria ter uma natureza democrática - mas ele teria de vir obrigatoriamente de fora da classe política profissional.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP. O titular da coluna, Raymundo Costa, está em férias

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