Houve um tempo, há uma geração ou mais, em que vertentes radicais do comunismo conseguiam adeptos mesmo entre intelectuais respeitados do Ocidente, ainda que promovessem, aquelas vertentes, experimentos sociais particularmente controvertidos. Foi o caso do Grande Timoneiro, Mao Tsé-tung, e sua Revolução Cultural, que se colocavam como "faróis" para franjas do que se chamava de movimento comunista mundial, franjas que tiveram um papel até na guerrilha rural brasileira dos tempos do regime militar.
O quadro, hoje, é notavelmente diverso, tanto no Brasil redemocratizado como no mundo abalado por grandes transformações, entre as quais a emergência do gigante chinês em chave antimaoista, misturando, como se sabe, autocracia política e mercado capitalista a pleno vapor, saída autoritária imaginada por um líder em desgraça nos tempos da Revolução Cultural, Deng Xiao Ping.
Ao considerar nosso momento político, em ano eleitoral e num mundo às voltas com o que talvez possa ser caracterizado como "estagnação secular", nenhuma daquelas espetaculares transformações impede que se relembre uma das últimas consignas do hoje esquecido Timoneiro, segundo a qual a situação será sempre excelente exatamente quando for muito grande a confusão reinante sob os céus. Versão oriental, com breves tons de lirismo, para o que nos acostumamos a chamar, mais prosaicamente, de "quanto pior, melhor".
O principal ator político da cena brasileira, um partido fundado há apenas 34 anos, quase 12 dos quais à frente do poder central, para não mencionar a condição de favorito em outubro próximo, não é propriamente fator alheio à confusão nacional. De vocação fortemente hegemônica - no que esta palavra tem de pendor excludente, no sentido de subordinar fortemente os aliados, domando-os pelos mecanismos tradicionalíssimos do presidencialismo de cooptação -, opera a "luta política" com desenvoltura e contundência: deixada a si mesma, sua cultura pareceria destinada a deslegitimar o adversário (qualquer adversário) e a própria ideia de alternância.
Partido de massas, com senso agudo de controle das alavancas do poder e submetido a liderança carismática inconteste, é dono, além de tudo, de influente narrativa sobre a sociedade brasileira: uma sequência de equívocos protagonizada pelas "elites" durante cinco séculos, só interrompida pelas eleições de 2002. A partir daí, segundo retórica triunfalista de infausta memória na esquerda, ter-se-ia inclusão social sem paralelo possível com nenhum período anterior, especialmente com os governos da social-democracia "neoliberal". Comportamentos duvidosos, como os que levaram à Ação Penal 470, nem sequer são reconhecidos autocriticamente, quando não "absolvidos" pela revolução social que estaria em curso.
A confusão aumenta sensivelmente quando se observam os resultados práticos, na sociedade, de uma ação de governo hegemonizada por linguagem de esquerda (e até de extrema esquerda), mas paradoxalmente identificada com a generalização de valores mercantis - resultado objetivo de serviços públicos de qualidade sofrível, que fortalecem o consumo privado em áreas que qualquer Estado de bem-estar retiraria do arbítrio do mercado e garantiria como direitos da cidadania.
A degradação das metrópoles (o automóvel!), mas não só delas, fornece o caldo de cultura em que viceja o lado pior dos "novíssimos movimentos sociais": o lado avesso à mediação e às formas da democracia, tidas como falidas, com a consequente irrupção do protesto violento dirigido, abstratamente, contra símbolos imediatos da "opressão", aí incluídos bens de utilidade pública, o comércio, a banca de jornal, o jornalista a serviço da "mídia burguesa" ou o policial individualmente considerado - este mesmo que um dia, em outro contexto de intenso conflito, alguém como Pasolini dizia, em texto complexo, ser "filho de pobres, vindo das periferias, camponesas ou urbanas que sejam". (Para eliminar explorações equívocas, a violência da instituição policial brasileira, uma das campeãs mundiais de letalidade, e o despreparo de muitos de seus integrantes fazem parte dos serviços de má qualidade ofertados à sociedade, ela mesma às voltas com a crueldade de justiceiros e linchamentos, os quais por vezes apoia e sobre os quais se divide pavorosamente.)
Existe assim, de modo patente ou apenas intuído, um continuum entre uma política levada adiante com poucos escrúpulos institucionais, para a qual se pode fazer o diabo e só não vale perder eleição, e uma sociedade que se torna progressivamente "incivil", obviamente não à beira da revolução preconizada pelo Timoneiro, mas em meio à barbárie de seus 50 mil homicídios anuais.
O cenário da grande confusão sob os céus pode estar em preparação: ruas sequestradas por pequenos grupos, perplexidade das oposições, reações governamentais desajuizadas, como quando, no rastro dos eventos de junho, a presidente da República propôs "Constituinte exclusiva" para a reforma política, ao arrepio da legalidade vigente. A bem da verdade, proposta logo abandonada, mas que volta e meia reaparece como fator de desordem institucional, defendida por admiradores, na elite petista, do modelo chinês de partido-Estado e da relação que teria instaurado com o mercado, supostamente garantindo, como cláusula pétrea, um igualitarismo que só existe nas imagens mais edulcoradas. Modos chineses numa hora dessas?
Não se pode dizer que sejamos uma democracia sem democratas ou uma sociedade sem anticorpos para tentações autoritárias. Será mais certo dizer que (ainda) não temos, à esquerda, um partido que faça da Constituição o seu programa. A mera existência de tal partido permitiria superar com serenidade as tensões que vivemos e as que certamente nos aguardam.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta e um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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