• Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso relembra período da ditadura em depoimento à Comissão da Verdade
Washington Luiz, Eduardo Barretto e Evandro Éboli - O Globo
BRASÍLIA - Perseguido e cassado pela ditadura militar, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) prestou depoimento de uma hora à Comissão Nacional da Verdade, anteontem, em seu apartamento em São Paulo. Fernando Henrique falou sobre os depoimentos que prestou nas unidades militares; o encontro com o ex-ministro Golbery do Couto e Silva, no qual denunciou torturas contra seus colegas; de sua aposentadoria precoce na USP por conta da perseguição política; e da intimação do DOI-Codi. "O que passou comigo não é nada (em comparação) com o que aconteceu com milhares de pessoas". Ao falar do período no exílio, lembrou ter afirmado à época que o caviar servido era amargo. O depoimento do tucano foi concedido a José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro. A seguir, os principais trechos:
Comício da Central em 1964
"Vi o comício. Quando eu saí da casa do meu pai, me assustei porque havia muitas velas acesas nas janelas dos apartamentos de Copacabana, de protesto contra o comício. Era um ambiente assim".
Prisão decretada
"Começou a fase dos inquéritos militares. O fato é que decretaram a minha prisão. Havia várias alegações, algumas bastante ridículas. Uma é de que eu havia sido, e fui, tesoureiro do Centro de Estudos do Petróleo. Enfim, tinha uma porção de elementos fantasiosos que te transformavam numa pessoa perigosa".
Exílio na França e Chile
"Eu até dizia de brincadeira: "Estão servindo caviar, mas é amargo". Em que sentido isso é amargo? Você vive a maior parte do tempo imaginando o que está acontecendo no país seu. Romantizando, vendo chances, oportunidades, que não se concretizam, raramente se concretizam, e na expectativa de que tudo vai mudar".
AI-5
"Eu ganhei a cátedra (como professor da Universidade de São Paulo) em outubro. Em dezembro, vem o AI-5. Eu estava em casa, liguei o rádio, ouvi o Gaminha (ministro da Justiça, redator do AI-5) , como nós o chamávamos, lendo como se fosse um grande algoz. E o AI-5 era um fechamento completo. Bom, isso aí vai mal. Quando um dia eu estou indo para a faculdade de carro, ouço no rádio que tinham me cassado, perdido a cátedra compulsoriamente, não sei o quê. Eu e outros. Na verdade, todos aqueles que a universidade tinha acusado lá atrás, de novo foram cassados".
Jovem aposentado
"No dia que eu fui à USP para receber os proventos de aposentado, na reitoria, cheguei no guichê, e a senhora que estava lá me disse: "Mas já morreu". Eu: "Não, não morri, não. Eu Tô aqui". Porque tinha morrido Fernando Henrique de Almeida, da Faculdade de Direito. Ela foi lá e me deu o cheque: "Como é que conseguiu tão moço se aposentar?" (Fernando Henrique tinha 37 anos). Para ela, aquilo era uma vantagem. Não é tão fácil assim, né?".
Carta a Geisel
"Numa dessas rodadas que meteram a gente na cadeia, ainda no Dops, eu levei, eu creio que o Chico (Buarque) foi comigo, não sei se o Vinícius (de Moraes) ou o se foi o Régis (de Castro Andrade, intelectual), à casa do Severo Gomes (ministro da Indústria e Comércio de Geisel). E disse: "Olha, Severo, olha o que está acontecendo no seu governo". E, naquela época, eles sabiam quem tinha torturado e tal, e o Severo me disse: "Você me escreve uma carta ao Geisel?". Eu disse: "Eu escrevo". E eu escrevi uma carta ao Geisel denunciando. E dei ao Severo. Passou um tempo, o Severo disse que o Geisel leu e perguntou: "E este daí também não é comunista?". Era eu. Então não aconteceu nada. E sabia o nome do delegado, e tudo isso. Eu não conhecia Geisel e coisa nenhuma".
Reunião com Golbery no Planalto
"Fui para a sala do Golbery (no Palácio do Planalto), sozinho. Fui sozinho, contei os episódios. E o Golbery começou assim: "Mas isso não pode continuar, isso é uma coisa de maus brasileiros, maus patriotas, não sei o quê". Eu disse: "Olha, general, o senhor me desculpe, mas isso aí não é assim, não. Porque eu estive lá". Já tinha estado na Oban (Operação Bandeirante). E eu fui lá, eu vi gente, eu não fui torturado, mas eu vi gente torturada. E o Golbery: "Isso vai ser resolvido, isso vai ser resolvido". Eu acho que o Golbery era sincero. Acho que eles estavam perdendo o controle da repressão. E ele disse: "Vocês vão procurar o Falcão (ministro da Justiça)". O Falcão era de uma agressividade enorme, e nos recebeu muito mal".
No Brasil, por amor ao país
"Fui até o gabinete do coronel, que era o responsável pela Oban. Esqueci o nome dele. Eu fui duas vezes. E são coisas curiosas. Eu sei que num dado momento, quando ele, o general, me disse: "Mas vocês não são patriotas, isso é coisa de maus brasileiros". Eu fiquei irritado. Eu sou calmo geralmente, mas em certos momentos a gente se irrita. Eu dei um murro e falei: "Olha, o senhor não me diga isso. Eu poderia estar em qualquer lugar do mundo dando aula, muito bem pago e muito à vontade, e estou aqui no Brasil porque eu tenho amor pelo país". E inverti a relação com ele. Depois eu liberei uma pessoa pelo telefone, com esse coronel".
Interrogatório no Doi-Codi
"Eu creio que eles não tinham mãos livres sobre nós, porque já era uma fase de Geisel, mas mesmo assim nos tiraram fotografia com aquele número, nos colocaram um capuz na cabeça. Passei 24 horas lá. Mas, comparando o que passou comigo, não é nada como o que aconteceu com milhares de pessoas. Hoje, todo mundo virou democrata, naquela época era muito difícil. Qualquer gesto era um gesto arriscado e de coragem".
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