- Valor Econômico
• Depoimentos são imprecisos mas guardam lógica
O depoimento que o ex-senador Delcídio do Amaral prestou na investigação da Operação Lava-Jato sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um relato que tem começo, meio e fim e junta as pontas soltas da parceria do PT com os partidos no Congresso e seus objetivos. Muitas vezes a versão de Delcídio é pouco rigorosa e atropela os fatos, assim como a delação premiada de outros políticos. Cotejada com os acontecimentos, no entanto, a "narrativa" adquire fluência natural.
A autoridade de Delcídio para juntar as pontas das investigações é sua biografia: na sequência, líder do PT e da base aliada do governo no Senado, presidente da CPI dos Correios que investigou o mensalão, líder do governo de Dilma Rousseff. Além de tudo isso, ex-funcionário da Petrobras, com amplo conhecimento dos meandros da estatal. O próprio Delcídio, depois que falou na investigação da Lava-Jato sobre Lula, comentou que seu depoimento era de uma lógica "difícil de refutar". Uma espécie de sistematização do que foi dito por outros colaboradores.
O ex-senador é alguém de dentro, algumas vezes mais, outras menos. O PT e Lula se afastaram dele, por exemplo, quando teria dito ao ex-presidente que não botaria "panos quentes" no inquérito do mensalão, quando presidia a CPI dos Correios. Lula prontamente teria respondido "faça seu trabalho, doa a quem doer". Mas a partir desse instante Delcídio sentiu que o PT e Lula o colocaram na geladeira. Virou um "exilado" dentro do petismo. A reaproximação com Lula e o governo só ocorreria bem mais tarde. No petrolão já era líder do governo Dilma no Senado.
Delcídio descreve a articulação que levou o PMDB para dentro do governo mais como uma medida desesperada de Lula para evitar o impeachment no mensalão, que uma tentativa de melhorar a governabilidade. Numa afirmação só diz que Lula reagiu defensivamente, com medo de ser impedido. Mas também fala que o objetivo eram a governabilidade, a sucessão (com Dilma Rousseff) e a volta (dele, Lula da Silva).
Lula levou o PMDB para o governo no início de 2004. O mensalão foi denunciado pelo então deputado Roberto Jefferson, numa entrevista à jornalista Renata Lo Prete, da "Folha de S. Paulo", em junho de 2005. Antes de Lula tomar posse, em 2003, José Dirceu chegou a negociar dois ministérios para os pemedebistas, mas foi desautorizado por Lula. Para atrair o apoio do maior partido brasileiro no Congresso, Lula, depois, em 2004, entregou dois ministérios que não satisfaziam o apetite do PMDB - Previdência e Comunicações.
Mas em julho de 2005, já com o mensalão nos calcanhares, o então presidente reforça e dá consistência à representação do PMDB no governo do PT: a Previdência, que mais tirava do que dava votos, volta para o PT, mas em compensação o PMDB leva o ministério das Minas e Energia, para o qual é indicado um afilhado do ex-senador José Sarney (Silas Rondeau), e o poderoso Ministério da Saúde, entregue a um deputado, Saraiva Felipe, que liderava a bancada da Câmara. Comunicações permaneceu com o partido, mas na mão de um senador, Helio Costa (MG).
Segundo Delcídio é nessa época que começa a abertura das diretorias da Petrobras aos outros partidos. Até então era um esquema restrito. "Puro sangue", na expressão do ex-senador. Mas já com o objetivo de arrecadar dinheiro para os partidos. O PMDB passou a "compartilhar" diretores da Petrobras, mas logo tinha mais influência que os partidos originais da indicação, como o PP. "Aí as coisas escalaram mesmo, era uma máquina operando para atender os partidos importantes da base para garantir a dita governabilidade", disse. "As coisas ficaram mais escrachadas".
No capítulo do mensalão, Delcídio relata a disputa entre o PMDB do Senado e o PMDB da Câmara para indicar um diretor da Petrobras. Atribui a queda da CPMF, o imposto do cheque, à queda de braço entre os pemedebistas e o governo e entre o PMDB da Câmara e o do Senado. Na prática, essa é uma disputa que só ocorreu em 2007, quando o mensalão já era assunto para os tribunais. Mas de fato o PMDB atrapalhou a tramitação do projeto de prorrogação da CPMF na Câmara, que só foi aprovado e enviado ao Senado em outubro, depois de emplacar o nome que a bancada queria na Petrobras - em dezembro a CPMF foi derrotada sob muitas explicações, nenhuma delas convincente o bastante.
Do posto de observação de Delcídio, a governabilidade era uma disputa selvagem. Se um partido pedia um cargo para o governo e a nomeação do afilhado demorava, usava sem pudor o regimento para "embananar as votações". o antigo líder do PT e do governo sabe do que fala quando afirma que essa "é a praxe".
O mesmo esquema não teve como ser posto em prática no petrolão. Faltou política, como Lula, "ladino" que enxerga longe, segundo Delcídio, queria fazer desde o início, mas que Dilma se recusava a obedecer convencida por auxiliares de que a Lava-Jato nunca chegaria à presidente da República. "Dilma tinha outro pensamento. Entendia que isso não chegaria nela. Isso atingiria muita gente mas não chegaria nela. Ela sairia fortalecida desse processo todo". Dirigindo-se ao procurador que tomava o depoimento, Delcídio completou, irônico: "Com todo o respeito, isso era indissociável, em função das campanhas eleitorais - agora chega na campanha da própria Dilma, e do Michel [Temer] 2014, 2010".
Lula ainda tentou replicar o gabinete de crise que montou em 2005 para gerenciar o mensalão. "Quando Dilma resolve agir, não era um processo tão simples". O próprio Delcídio desempenhou alguma missões, segundo afirmou, para Lula e Dilma, o que ambos desmentem. Estava no centro do furacão. Delcídio, como se sabe, foi preso no fim do ano passado sob a acusação de tentar obstruir a Lava-Jato.
O depoimento de Delcídio não põe fim a uma dúvida que perpassa os depoimentos da Lava-Jato, sobretudo os dos políticos arrolados na investigação: o mensalão foi um esquema independente, um ensaio para petrolão, ou os dois existiram simultaneamente? O que parece não haver dúvida é sobre como Lula se sustentou em 2005 e Dilma caiu em 2016.
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