É imperioso que Câmara e Senado retomem as atividades da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga as fake news. Essa necessidade foi reforçada depois de Luiz Henrique Mandetta revelar um possível gabinete paralelo, no qual o presidente da República se aconselharia para decidir as ações do governo na pandemia do coronavírus ao largo do Ministério da Saúde. O ex-ministro revelou ainda a participação de destaque em reuniões do filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, sem função governamental oficial.
A existência desse gabinete paralelo foi reafirmada pelo depoimento de Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, à CPI da Covid-19. Segundo ele, em uma reunião com a presença da médica oncologista Nise Yamaguchi, foi proposta a alteração da bula da hidroxicloroquina com o objetivo de indicá-la no tratamento do Sars-CoV-2. Como se sabe, as instituições científicas e médicas já comprovaram a ineficácia desse e de outros medicamentos no combate à Covid-19.
Os depoimentos posteriores do gerente-geral da Pfizer para a América Latina, Carlos Murillo – que relatou as dificuldades e atrasos para a venda de vacinas ao governo brasileiro –, do ex-secretário de Comunicação Social Fabio Wajngarten, da secretaria do Ministério da Saúde Mayra Dias e da médica Nise Yamaguchi fortaleceram na CPI a convicção da maioria dos seus membros de que as decisões de políticas de saúde passaram pelo chamado gabinete paralelo e em contrário ao Ministério da Saúde.
O depoimento da médica infectologista Luana Araújo, vetada pelo Palácio do Planalto para assumir a recém-criada Secretária Extraordinária de Enfrentamento à Pandemia a convite do ministro Marcelo Queiroga, mostra que as injunções políticas continuam a sobrepor à ação do Ministério da Saúde na atual crise sanitária. A infectologista era e continua contrária ao uso da hidroxicloroquina e outros medicamentos do “tratamento precoce”, motivo das demissões de Mandetta e do médico Nelson Teich da pasta da Saúde.
Vídeos das reuniões do gabinete paralelo
Ao mesmo tempo em que a CPI da Covid tomava os depoimentos, o site Metrópoles publicou vídeos que revelam as atividades do gabinete paralelo (1). Um dos vídeos, de 24 de agosto de 2020, mostra discurso do advogado Arthur Weintraub, em cerimônia oficial, no qual relata seus contatos com médicos na condição de assessor especial da Presidência da República. Arthur é irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, considerados membros da ala de extrema-direita do governo.
Um segundo vídeo traz conversa entre ele e o deputado Eduardo Bolsonaro, no qual relata que foi incentivado pelo presidente da República a pesquisar sobre a hidroxicloroquina. Segundo Arthur Weintraub, os relatórios produzidos por ele levaram o chefe no Executivo a zerar os impostos de importação de medicamentos como a cloroquina e a azitromicina, ainda em março de 2020 (2).
Um terceiro vídeo, de setembro de 2020, traz a participação de Jair Bolsonaro em uma reunião com médicos e assessores, dividindo uma mesa ao lado de Osmar Terra (MDB-RS), deputado que chegou a ser cotado para substituir Nelson Teich no Ministério da Saúde. O parlamentar, que ficou famoso por suas posições negacionistas, foi vetado pela ala militar do governo, favorável um reposicionamento do presidente no combate à pandemia, no sentido de adotar as medidas recomendadas pela equipe do próprio Ministério da Saúde: o uso de máscaras, distanciamento social e compra de vacinas.
Como foi amplamente noticiado, Bolsonaro desautorizou posteriormente o ministro Eduardo Pazuello a comprar a vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac. Somente depois de pressões dos governadores, que recorreram ao Supremo Tribunal Federal, é que a Coronavac foi incluída no Plano Nacional de Imunização, levando a um atraso de pelos menos dois meses, segundo o depoimento do diretor do Butantan Dimas Covas, em depoimento à CPI da Pandemia.
No vídeo, na reunião de Bolsonaro com Omar Terra e o que pode ser o gabinete paralelo, sem a presença do ministro da Saúde, médicos como Nise Yamaguchi e o virologista Paolo Zanoto discutem com entusiasmo o uso da hidroxicloroquina e esse último põe em dúvida a necessidade de vacinação em massa da população brasileira.
Entrelaçamento entre o gabinete paralelo e o gabinete do ódio.
É do conhecimento de todos que, desde o início da pandemia, os militantes digitais pró-Bolsonaro difundem pelas redes sociais mensagens contra a Organização Mundial de Saúde, contra toda e qualquer vacina, pondo em dúvida a sua eficácia bem como informações de efeitos colaterais inexistentes, como alterações genéticas em vacinados, além de promoverem os medicamentos ineficazes e de efeitos colaterais graves, incentivando a população à automedicação.
Também as redes sociais foram inundadas por mensagens contrárias às medidas de isolamento social, como quarentena e lockdown. As redes bolsonaristas desde sempre propagaram a tese da imunidade de rebanho, combatida pelo consenso da comunidade científica.
É curioso notar que, desde o inicio da pandemia, a sintonia entre as discussões do gabinete paralelo, a disseminação das notícias das redes sociais e as declarações do presidente da República quase que diariamente pela manhã na entrada do Palácio do Planalto no famoso cercadinho. Imediatamente, vídeos com as palavras do presidente são difundidos nas redes sociais, acompanhados de outras mensagens com o mesmo teor, compartilhadas em páginas dos militantes digitais bolsonaristas, inclusive nos perfis de parlamentares como Bia Kicis e Carla Zambelli, ambas da tropa de choque de Jair Bolsonaro, entre outros congressistas. Tal sintonia mostra uma ação orquestrada e deliberada.
Nem mesmo as restrições impostas por YouTube, Instagram, Twitter e Facebook à difusão de notícias falsas ou sem comprovação científica somadas à investigação que corre no Supremo Tribunal Federal fizeram cessar a campanha de desinformação que só fez agravar a crise sanitária no Brasil.
Atualmente, nos sites e nas páginas bolsonaristas, bem como nas redes sociais como do WhatsApp, velada ou abertamente, vê-se diariamente uma campanha concentrada em desqualificar a CPI da Covid-19 e difundir mensagens caluniosas e injuriosas contra seus membros, além da continuidade da desinformação contra as vacinas e o isolamento social e a defesa da hidroxicloroquina.
É preciso investigar a responsabilidade, entre outras ações, do chamado gabinete do ódio e o seu entrelaçamento com o gabinete paralelo, em promover desinformação durante a pandemia do coronavírus, na qual o Brasil possui a trágica estatística de um dos maiores números de mortos no mundo.
O gabinete do ódio
Em
19 de setembro de 2019, o jornal O Estado
de São Paulo assim noticiou o gabinete do ódio:
”Com
a senha das redes do pai, o vereador licenciado Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), o
“zero dois” do presidente, dá ordens para os assessores Tércio Arnaud Tomaz,
José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz. Os três são da confiança do vereador e também do
deputado Eduardo Bolsonaro (PSL- SP) – o filho “zero três” (...).
Filipe
Martins, o assessor para Assuntos Internacionais de Bolsonaro, também faz
parte desse grupo. Tércio, José Matheus, Diniz e Filipe despacham no terceiro
andar do Planalto, ao lado do presidente. Outro integrante do núcleo é Célio
Faria Júnior, que Bolsonaro trouxe da Marinha e hoje é chefe da Assessoria
Especial da Presidêcia.
Com
carta branca para entrar no Planalto, o assessor parlamentar Leonardo Rodrigues
de Jesus, o Leo Índio, primo dos filhos de Bolsonaro, virou uma espécie de
“espião voluntário” do governo. Léo Índio já produziu dossiês informais de
“infiltrados e comunistas” nas estruturas federais, como revelou o Estado. O
então ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos
Cruz, comprou briga com Carlos e com ele. Foi demitido.” (3)
Nesse mesmo dia 19 de setembro de 2019, a Folha de São Paulo noticiou que “Tercio Arnaud Tomaz, 31, José Matheus Salles Gomes, 26, e Mateus Matos Diniz, 25, chegaram ao governo com o objetivo de manter viva a militância digital responsável por alçar Bolsonaro à Presidência.” E revelou que “com salários que variam de R$ 10 mil a R$ 13,6 mil, os três eram tidos até então como jovens e inexperientes demais para influenciar a cabeça de quem ocupou o cargo de deputado federal por sete mandatos.” (4)
Pré-campanha e eleição 2022
Há muito tempo que o presidente Jair Bolsonaro está em pré-campanha para presidente da República. Como vimos em 2018 no Brasil e em eleições em outros países, as redes sociais podem ocupar um lugar estratégico nas próximas eleições para a Presidência da República, para os governos dos estados, para o Senado, para a Câmara de Deputados e para as Assembleias Legislativas. O uso descontrolado das redes sociais e a difusão de fake news desequilibram o jogo democrático, que tem por regra a igualdade de condições do processo eleitoral, garantindo de eleições justas e democráticas.
Portanto, diante de tão massiva campanha de desinformação, é imperiosa a volta dos trabalhos da CPMI das Fakes News no Congresso Nacional.
*Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros ERA UMA VEZ EM PRAGA – Um brasileiro na Revolução de Veludo e LÊNIN, MARTOV A REVOLUÇÃO RUSSA E O BRASIL, entre outros.
NOTAS
(1) Vídeos indicam que Arthur Weintraub pode
ter coordenado o “ministério paralelo”.
Exclusivo: vídeos mostram “ministério
paralelo” orientando Bolsonaro contra vacinas.
(2) Governo zera imposto de importação de
medicamentos contra a covid-19.
(3) ‘Gabinete do ódio’ está por trás da
divisão da família Bolsonaro.
(4) 'Gabinete da raiva' perde espaço no
Planalto após alta da reprovação de Bolsonaro. Bunker ideológico é formado por
três assessores, tutelados pelo vereador licenciado Carlos Bolsonaro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário