- O Estado de S. Paulo
O governo vai nadar em dinheiro, confiante
em que nada vai parecer tão trágico
“Não
é uma boa decisão, mas também não é trágica”, confidenciou uma das principais
personalidades do mundo militar e que faz parte do governo de Jair Bolsonaro. A opinião parece
refletir o que pensa parcela substancial dos oficiais-generais da ativa quanto
à não
punição do general Eduardo Pazuello.
Depende do que se considera como trágico.
O Exército foi apenas
a mais recente instituição de Estado brasileira (o Ministério da Saúde veio
antes) instada a adotar o “Führerprinzip” – expressão consagrada na ciência
política. No lugar do alemão “Führer” cabe caudillo, máximo líder, guia genial
dos povos, condottieri, conducator ou, em russo, vozhd (“dono dos
servos”).
O significado é o mesmo. Trata-se do princípio da lealdade em primeiro lugar à pessoa do dirigente político e só depois às instituições que existem, obviamente, para servi-lo. Traduzido para o bolsonarês castiço, “Führerprinzip” é “mito”. Ocorre que nos trópicos (que já foram chamados de tristes) muitos princípios viram bagunça, e “mito” no Brasil está mais para “acomodação” do que para “condução”.
Bolsonaro é um sucesso entre as forças políticas do Centrão que vivem da proximidade dos cofres públicos ou do domínio de pedaços das máquinas estatais transformadas em ferramentas para defesa de seus interesses particulares – e nem estamos falando de corrupção. Elas se acomodaram dentro do Palácio do Planalto, de onde retiraram a prerrogativa de distribuir verbas de orçamentos costurados à luz ou às sombras por poucos mandões (Bolsonaro só obedece).
As grandes resistências a reformas
essenciais, como a administrativa e
a tributária,
se consolidam diante da falta de efetiva liderança (portanto, condução)
política para romper tradicionais interesses acomodados. No caso da
administrativa, trata-se do corporativismo do mais bem organizado grupo na
defesa de si mesmo, que é a elite do funcionalismo público brasileiro. No caso
da tributária, é uma imensa variedade de demandas setoriais que tornam
impossível, por exemplo, eliminar as bilionárias renúncias fiscais – e impedem
qualquer reforma abrangente.
As cúpulas militares também se acomodaram
não só ao desfrute das posições de privilégio e altos salários em milhares de
cargos no Executivo, mas também à noção de que as coisas podem se resolver se
deixadas entregues a si mesmas. E que a inação diante da degradação das
instituições, do uso descarado da mentira e da propagação da ignorância como
método de governo é uma contribuição para evitar mais uma crise com o
“mito”.
É interessante notar como as grandes
correções de rumo na política externa, comercial e, até certo ponto, ambiental
estão sendo impostas pela consciência que as elites dirigentes dos setores
afetados dentro e fora do Brasil têm dos prejuízos, aos quais seria impossível
se acomodar. Mas, quando se trata dos rumos políticos gerais do País, essa
mesma consciência de elites dirigentes e pensantes – que enxergam Bolsonaro no
mínimo como um tosco irrecuperável – não chegou ainda à articulação de nomes
para se contrapor ao “mito”.
Por maiores que sejam os solavancos
causados pela CPI da Pandemia, e o provável
indiciamento de Bolsonaro como principal responsável pelo desastre no
enfrentamento da doença, o período imediatamente adiante sugere acomodação. Com
a inflação aumentando a arrecadação, além da recuperação econômica, vai sobrar
dinheiro a curto prazo para auxílio emergencial e até mesmo para um novo
programa social (se o governo conseguir se organizar até dezembro, pois em ano
de eleição não pode).
Sem que nada de essencial tenha sido feito,
vai parecer que a questão fiscal não é assim tão trágica, que as perdas
econômicas também não foram assim tão trágicas, nem sequer tão trágico assim é
o número de mortos pela pandemia (“supernotificados”, segundo Bolsonaro). Nem
surge como trágico o reiterado empenho por parte do presidente em culpar sempre
os outros, em atacar qualquer um que pareça impedi-lo de governar, e seu namoro
com golpes e anarquia. Pois é mais confortável achar que as instituições
funcionam.
De fato, nada parece trágico. Basta se acomodar.
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