EDITORIAIS
A rede de mentiras e desinformação no
Palácio do Planalto
O Globo
Para informações que incomodam, todo governo quer impor sigilo. Não é outro o motivo que levou o Exército a decretar cem anos de segredo ao processo administrativo aberto contra o ex-ministro e general da ativa Eduardo Pazuello, por ter participado de manifestação política ao lado do presidente Jair Bolsonaro. O mesmo prazo secular foi imposto pelo Palácio do Planalto em instâncias prosaicas, como a carteira de vacinação de Bolsonaro, ou bem mais relevantes, caso da identidade dos servidores que acessam perfis oficiais nas redes sociais.
Foi decisiva, para entender a comunicação
digital do Planalto, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), que levantou o sigilo sobre o inquérito que apura a
participação de políticos em atos antidemocráticos. Moraes destampou um bueiro
que já exala um odor nada agradável, que todas as evidências revelam emanar do
Planalto. O relatório produzido pela Polícia Federal (PF) no âmbito do
inquérito ainda deverá ser esmiuçado, mas o que já se descobriu é suficiente
para comprovar o envolvimento de expoentes do bolsonarismo em episódios para lá
de suspeitos.
Os policiais partiram da análise técnica do
Digital Forensic Research Lab (DFRLab), vinculado ao americano Atlantic
Council, que documentou o uso das redes sociais bolsonaristas para disseminar
desinformação. De acordo com reportagem do GLOBO, o assessor presidencial
Tercio Arnaud Tomaz é apontado pela PF como chefe do “gabinete do ódio”, que
comandava a publicação de conteúdos fraudulentos sobre a Covid-19 e desferia
ataques a políticos rivais e ex-aliados de Bolsonaro. Tomaz operava, de dentro
do Planalto e até do condomínio onde mora a família Bolsonaro, um perfil com
492 mil seguidores no Facebook e mais de 11 mil no Instagram, com um nome
autoexplicativo: “Bolsonaronews”.
Enquanto esteve no ar, o “Bolsonaronews” veiculou elegias à cloroquina e alvejou os principais opositores de Bolsonaro: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ex-ministros Sergio Moro e Henrique Mandetta, o ex-governador Wilson Witzel e o deputado Rodrigo Maia (RJ), ainda presidente da Câmara. Partiram de órgãos públicos, segundo a polícia, acessos a páginas de desinformação operadas por assessores do senador Flávio Bolsonaro e do deputado federal Eduardo Bolsonaro.
Noutro trecho, o relatório vincula a um
assessor da deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) o acampamento de
ativistas radicais que organizaram a manifestação de mascarados que marcharam
contra o Supremo carregando tochas no ano passado. Também associa um
funcionário do Ministério dos Direitos Humanos ao aluguel de equipamentos
usados num protesto diante do Quartel-General do Exército em favor de um golpe
militar.
Apesar de todas essas evidências, o
procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF o arquivamento do
caso, sob a alegação esdrúxula de que a PF desviou o foco da investigação e não
comprovou o envolvimento de parlamentares. A atitude de Aras não tem o menor
cabimento. As provas exigem, de alguém digno do cargo, no mínimo um pedido de
aprofundamento das investigações. A despeito da complacência de Aras, Moraes
faria bem em levar o inquérito até o fim para desvendar a origem da rede de
mentiras e desinformação que tomou conta dos escalões mais altos da República.
Excesso de mortalidade continua a ser a
melhor medida do impacto do vírus
O Globo
O afastamento do auditor do Tribunal de Contas da União (TCU) que emitiu um documento apontando provável supernotificação das mortes por Covid-19 no Brasil é, na superfície, apenas mais um escândalo em que um órgão do Estado foi usado para fins políticos pelo presidente Jair Bolsonaro. Na realidade, revela a incompreensão absoluta do que seja uma pandemia — não só entre bolsonaristas, mas também entre políticos, acadêmicos e na própria imprensa. Trata-se não apenas da disseminação de uma doença contagiosa mortífera, mas de um choque externo que abala todo o sistema de saúde mundial.
O novo coronavírus provoca falta de vagas
em hospital para atender vítimas de acidentes, leva ao adiamento de cirurgias
necessárias para extirpar cânceres, posterga o diagnóstico e tratamento de
males cardíacos e outras doenças. As mortes vão muito além daquelas causadas
diretamente pela Covid-19 — assim como em todas as pandemias ao longo da
história humana.
Pode haver subnotificação das mortes
provocadas por Covid-19 se faltarem testes para diagnóstico ou competência dos
médicos para registrar o código da doença nos atestados de óbito. Também pode
haver supernotificação quando esse código é usado indiscriminadamente para
identificar outras doenças de perfil clínico similar, como doença pulmonar
obstrutiva, tromboembolismo pulmonar, enfisema ou pneumonia viral (no início da
pandemia, a queda nesses diagnósticos sugere que, pelo menos na cidade de São
Paulo, algo assim pode ter ocorrido).
Por isso tudo, nem a subnotificação nem a
supernotificação das mortes por Covid-19 são tão importantes quanto parecem. A
melhor métrica para avaliar o impacto do vírus — e a esta altura o país inteiro
já deveria saber disso — não é somar apenas as mortes cujo diagnóstico possa
ser atribuído inequivocamente a ele. É estimar o número que os epidemiologistas
chamam de “excesso de mortes”: quanta gente morreu acima da média histórica num
certo período. Trata-se de contar todos os cadáveres para avaliar as mortes a
mais.
Há pelo menos duas medidas disponíveis
desse indicador. A primeira, feita pelo Conselho Nacional de Secretários de
Saúde (Conass), com base apenas em causas naturais, apontou excesso de 275.587
mortes em 2020, 22% acima das esperadas no ano e 41% acima das 194.976
atribuídas oficialmente ao Sars-CoV-2. De janeiro até 17 de abril de 2021, o
excesso foi, segundo o Conass, de 211.847 mortes, 64% acima do esperado e 20%
acima das 176.913 imputadas ao coronavírus.
No cálculo da revista “The Economist”, o
excesso de mortes por todas as causas no Brasil foi, de março de 2020 a abril
de 2021, de 428.880, 6,2% acima das 403.780 diagnosticadas como Covid-19. Isso
nos coloca em 19º lugar em taxa de mortalidade provocada pela pandemia, numa
lista de 80 países. Ambas as análises deixam claro que, no balanço, a
subnotificação supera a supernotificação, que a pandemia é uma tragédia sem
paralelo e que não há como o governo Bolsonaro se esquivar da responsabilidade
por isso.
Risco de estouro da inflação
O Estado de S. Paulo
Garantir comida, moradia e demais condições básicas de sobrevivência é uma tarefa cada vez mais complicada para os brasileiros, com a disparada dos preços. A inflação de maio, 0,83%, foi a maior para o mês em 25 anos. Chegou-se a um recorde nada festivo, especialmente num país com mais de 14 milhões de desempregados. Muitas famílias têm dependido de ajuda para comer e o número de subnutridos volta a aumentar, num tenebroso retrocesso histórico. O quadro piora seguidamente. Já chegou a 8,06%, em 12 meses, a alta acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em abril havia chegado a 6,76%.
Nem os mais otimistas levam em conta, em suas
previsões, a meta oficial de inflação, de 3,75%. O foco, agora, está num ponto
bem mais alto, no limite de tolerância, de 5,25%, fixado para 2021. O estouro
desse limite já é tido como quase certo. No mercado, a mediana das projeções já
cravou 5,44% como resultado final deste ano.
Com mais de 8% em 12 meses, parece bem
menos fantasmagórica a inflação de 2015, quando o IPCA subiu 10,67%. Foi uma
das últimas façanhas do governo da presidente Dilma Rousseff. O Brasil saberá,
dentro de dias, depois da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), se
os diretores do Banco Central (BC) terão sangue-frio para manter a
“normalização parcial” da taxa básica de juros. “Normalização parcial” foi a
qualificação oficial dos últimos dois aumentos, cada um de 0,75 ponto
porcentual. Mantido o padrão, a taxa será elevada para 4,25%.
O sangue-frio foi demonstrado, até a última
reunião, com a tentativa de atender a dois objetivos: reagir à inflação
crescente com um leve aperto monetário e, ao mesmo tempo, manter juros muito
moderados para estimular a atividade. Economistas muito respeitados no mercado
e na academia têm criticado a “normalização parcial”, sugerindo ações mais
fortes para contenção da alta de preços. Isso permitirá, segundo argumentam, um
avanço mais seguro, logo adiante, na reativação dos negócios.
O novo surto inflacionário é um fenômeno
global. A inflação recuou quando a atividade foi derrubada pela crise pandêmica
e retornou em seguida, mais forte, quando a economia reagiu. O Banco Mundial dá
destaque a esse novo surto na edição de junho de suas Perspectivas Econômicas
Globais. Segundo o relatório, a inflação média nos países
emergentes e em desenvolvimento chegou a 3,5% em 2020 e a projeção para 2021
aponta 4,5%. Na maior parte dos países, o resultado anual ficará na meta ou na
vizinhança.
O cenário brasileiro é obviamente mais
preocupante. A alta de preços tem sido bem superior à média observada naquele
grande grupo de países e, além disso, as projeções são bem piores. Alguns
fatores têm sido observados em toda a parte: alta das cotações de alimentos e
de minérios e desvalorização das moedas em relação ao dólar.
Mas quem segue o dia a dia do Brasil
percebe logo algumas diferenças. A alta geral de preços tem sido maior e as
projeções são piores, assim como o impacto do câmbio. Desde o ano passado, o
real tem sido uma das duas ou três moedas mais desvalorizadas diante do dólar.
Além disso, a instabilidade cambial tem claramente refletido as incertezas
diante do quadro fiscal e reações negativas a palavras e decisões do presidente
da República. A posição do câmbio seria muito diferente se estivesse associada
apenas ao comércio exterior, à evolução do balanço de pagamentos, ao estoque de
reservas e à excelente condição de solvência externa.
O IPCA subiu 3,22% em cinco meses. Atingirá
rapidamente a meta anual de 3,75% e ficará muito difícil evitar o estouro do
limite superior. O Copom terá de resolver se um aperto mais forte será
justificável como forma de cumprir sua missão central, a defesa do poder de
compra da moeda. Se um aumento maior de juros frear o crescimento, o
desemprego, já muito alto, será ainda mais duradouro. Se a inflação continuar
intensa, os desempregados e os pobres, de modo geral, serão os mais
prejudicados. É permitido jogar cara ou coroa em reunião do Copom?
A serviço da família Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, diz a Constituição no art. 5.º. No entanto, no governo de Jair Bolsonaro, a realidade é um pouco diferente. Alguns – em particular, os familiares do presidente da República – são mais iguais do que os outros. Recebem um tratamento verdadeiramente único, inacessível a todos os outros brasileiros.
No dia 17 de setembro de 2020, o secretário
da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, reuniu-se com o senador Flávio
Bolsonaro e a advogada Luciana Pires na casa do filho do presidente. Luciana
Pires defende Flávio no caso das rachadinhas, envolvendo o ex-assessor Fabrício
Queiroz. A reunião foi confirmada pela Receita Federal, em resposta a
requerimento da deputada Natália Bonavides (PT-RN).
Segundo o ofício da Receita Federal à
Câmara dos Deputados, a reunião domiciliar foi solicitada pelo filho mais velho
do presidente Jair Bolsonaro e dizia respeito “à situação fiscal de pessoas
físicas e jurídicas relacionadas ao senador Flávio Bolsonaro, na condição de
sujeito passivo de obrigação tributária, bem como a notícias sobre suposta
atuação irregular de servidores da Receita Federal no exercício de atividades
funcionais”.
A Receita informou também que José Barroso
Tostes Neto recebeu, em seu gabinete, as advogadas de Flávio Bolsonaro, nos
dias 26 de agosto e 14 de setembro de 2020.
Como se pode observar, é uma
disponibilidade a que poucos brasileiros têm acesso. Eventuais problemas ou
dúvidas com o Fisco não costumam ser atendidos com essa deferência pelo chefe
da Receita Federal.
Deve-se lembrar que não é a primeira vez
que o primogênito de Jair Bolsonaro recebe ajuda especial de órgãos públicos
para finalidades particulares. No ano passado, o senador Flávio Bolsonaro teve
assessoria do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e da Agência Brasileira
de Inteligência (Abin), recebendo orientações para sua defesa no caso das
rachadinhas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Em agosto de 2020, advogados de Flávio
Bolsonaro participaram de uma reunião no Palácio do Planalto com o
diretor-geral da Abin, o delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem, e o
ministro Augusto Heleno, chefe do GSI, pasta da Presidência à qual a agência é
vinculada.
Depois da reunião, integrantes da Abin
enviaram à defesa do senador Flávio Bolsonaro dois textos com orientações e
conselhos. Estruturado com “finalidades” e “linhas de ação”, um dos memorandos
da Abin explicitava o objetivo proposto: “Defender FB (Flávio Bolsonaro)
no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos
imotivados aos dados fiscais de FB”.
Num dos trechos dos textos da Abin, uma das
advogadas de Flávio foi aconselhada precisamente a conseguir uma audiência com
o secretário da Receita Federal para “tomar um cafezinho”. Ela deveria exigir
de José Barroso Tostes Neto informações e avisar que ajuizaria uma ação para
obter acesso a relatórios internos da Receita que, no entendimento da defesa, teriam
potencial de demonstrar acessos anteriores indevidos aos dados do senador, a
chamada “arapongagem”.
Agora, sabe-se que foi bem mais que um
cafezinho. José Barroso Tostes Neto, cuja pasta é vinculada ao Ministério da
Economia, recebeu duas vezes em seu gabinete as advogadas de Flávio Bolsonaro e
ainda se dispôs a ir à residência do senador.
Quando foi revelada a ajuda da Abin e do
GSI à defesa de Flávio Bolsonaro, o procurador-geral da República, Augusto
Aras, avaliou que a acusação era grave, mas faltavam provas. “O fato em si
narrado é grave, o que não temos são provas desses fatos, nós não trabalhamos
com narrativas. Trabalhamos com fatos e provas”, disse Augusto Aras. Agora, a
Receita Federal admite que a defesa de Flávio Bolsonaro, logo depois da reunião
no Palácio do Planalto, seguiu exatamente os passos que foram aconselhados
pelos memorandos da Abin.
Na República, o poder público não serve aos
interesses da família presidencial. O que foge a isso é inconstitucional e
escandaloso.
Terror em Manaus
O Estado de S. Paulo
Na madrugada de domingo a população de
Manaus foi tomada de assalto pelo pânico. Até a noite de segunda-feira, já
haviam sido contabilizados mais de 40 ataques a ônibus, viaturas policiais,
ambulâncias, agências bancárias e prédios públicos, ao que tudo indica
coordenados pela facção Comando Vermelho em retaliação à morte de um de seus
chefes em uma ação policial. A onda de violência, que já transbordou para pelo
menos seis cidades do interior e paralisou serviços essenciais, inclusive a
vacinação, é um sintoma da expansão do poder paralelo do crime organizado,
facilitada pela precariedade das forças locais e pela acefalia do sistema
nacional de segurança pública.
Na última década, o Brasil, outrora um
mercado consumidor para a cocaína produzida na Colômbia, Peru e Bolívia, se
transformou com velocidade espantosa num dos maiores fornecedores para a
Europa. A Amazônia é uma das duas principais rotas. A cocaína entra pelo Rio
Amazonas e vai até Manaus, de onde chega aos portos de Suape e Natal. A Família
do Norte era a principal facção local, mas tem sido confrontada pelo PCC e,
sobretudo, o Comando Vermelho, que passou a dominar a rota amazônica. A disputa
foi responsável por duas chacinas no complexo penitenciário de Manaus, em 2017
e 2019, deixando mais de 100 mortos.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública
do Amazonas, os ataques dessa semana foram ordenados de um presídio. É
sintomático. Como se sabe, os presídios se tornaram incubadoras do crime
organizado. Apesar disso, o debate público sobre a segurança se concentra na
repressão à violência nas ruas, detendo-se nos portões das penitenciárias.
O Brasil tem a terceira maior população
carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China. Mas, se nestes países há uma
estabilização ou declínio da população de presos, no Brasil ela cresce na ordem
de 8,3% ao ano. Em 2025, os atuais 726 mil encarcerados devem dobrar, chegando
a 1,5 milhão.
Estima-se que as mais de 70 facções
criminosas brasileiras dominem 85% das 1,3 mil unidades prisionais. Nelas,
apenas 15% dos presos estudam e 18% trabalham. Cerca de 40% são presos
provisórios, não condenados. Com a política de superencarceramento, todos os
anos são enviados para o regime fechado dezenas de milhares de infratores
responsáveis por delitos de menor impacto, a imensa maioria jovens, que são
obrigados a se submeter a pactos de vassalagem com condenados por crimes
hediondos e contra a vida e são recrutados pelas facções.
Concomitantemente à falência do sistema
carcerário, o País jamais estabeleceu um sistema nacional de segurança pública.
Nenhuma das sete Constituições brasileiras atribuiu ao poder federal
competências na área de segurança. Enquanto isso, o crime organizado se
nacionaliza e internacionaliza.
Na falta de uma política nacional, os planos
de combate ao crime ficam sujeitos às vicissitudes dos titulares do Ministério
da Justiça. Até hoje, por exemplo, o Brasil não tem um sistema de informação
integrado de segurança. O governo Temer chegou a aprovar um Sistema Único de
Segurança Pública e um Conselho Nacional, mas ambos foram praticamente
descontinuados pela atual gestão. Mesmo as iniciativas promissoras durante a
gestão de Sérgio Moro no Ministério da Justiça, como os projetos de segurança
comunitária municipal, a transferência de chefes de facções para presídios de
segurança máxima ou a ampliação da apreensão de drogas pela Polícia Federal,
foram pontuais e desconexas. Ainda menos atenção é dada a qualquer programa de
prevenção social.
O resultado é que as comunidades locais são
cada vez mais reféns de organizações criminosas nacionais. Em Manaus, enquanto
o Comando Vermelho comunica ao mundo que é ele que manda, as forças locais se
mostram desbaratinadas e a Força Nacional só foi enviada na terça-feira.
Espera-se que a repressão seja rigorosa. Mas dificilmente será o último
episódio de terror deflagrado pelo crime organizado nas metrópoles brasileiras.
Que ao menos sirva para alavancar um amplo debate sobre uma política nacional
de segurança pública.
Inquérito sem fim
Folha de S. Paulo
Disputas e falta de objetividade ameaçam
investigação sobre atos golpistas
São decepcionantes os resultados alcançados
até agora pelo inquérito
aberto para investigar os atos antidemocráticos organizados por
seguidores do presidente Jair Bolsonaro em abril do ano passado.
Após mais de um ano desde que o mandatário
foi à porta do quartel-general do Exército inflamar a turba golpista, que pedia
o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, as apurações parecem
longe de um desfecho.
Surgiram evidências de que aliados do
presidente estiveram entre os articuladores e os financiadores das manifestações
—e ainda apoiaram os tresloucados que pouco depois usaram fogos de artifício
para tentar intimidar o STF.
Acumularam-se também indícios de
envolvimento de nomes da cozinha do Palácio do Planalto com a ampla rede de
militantes bolsonaristas que usa a internet para espalhar desinformação,
difamar autoridades e fomentar descrédito nas instituições democráticas.
Dezenas de pessoas, incluindo 11 deputados
federais, foram alvo de buscas e interrogatórios. Várias foram presas em
caráter preventivo, e algumas até hoje estão submetidas a restrições para não
atrapalhar as investigações.
Apesar de tudo isso, a Polícia Federal se
diz incapaz de oferecer um retrato conclusivo sobre as ligações desses grupos
com o círculo do presidente e pede mais tempo para desvendar os laços que unem
os provocadores e as fontes de recursos que os sustentam.
A Procuradoria-Geral da República, que
requisitou a abertura do inquérito no ano passado, quer encerrar as
investigações sobre os congressistas envolvidos e transferir o restante do caso
para instâncias inferiores da Justiça.
Na segunda-feira (7), com o levantamento do
sigilo dos autos pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do processo no STF,
foi possível constatar também que as autoridades desperdiçam tempo batendo
cabeça em vez de cooperar.
A Procuradoria acusa a PF de atirar a esmo,
abandonando linhas de investigação prioritárias para perseguir outras hipóteses
sem chegar a lugar nenhum —mas levou ela mesmo cinco meses para examinar o
material colhido pela polícia e chegar a esse diagnóstico.
Dado o alinhamento do procurador-geral,
Augusto Aras, com os interesses de Bolsonaro, que deve renovar seu mandato em
breve, é de se imaginar se a Procuradoria quer mesmo investigar alguma coisa ou
trabalha apenas para desacreditar o trabalho da PF.
Caberá ao ministro Alexandre de Moraes
decidir o futuro do inquérito. Se cumpre reconhecer que resposta das
instituições serviu para conter o surto autoritário do ano passado, resta
identificar e punir os eventuais responsáveis.
Fumo da discórdia
Folha de S. Paulo
Comissão da Câmara aprova plantio de
cânabis, mas caminho do projeto é difícil
O preconceito ideológico se revela por
inteiro na comissão especial da Câmara dos Deputados criada para examinar
o projeto
de lei 399/15, sobre plantio de cânabis para uso medicinal e industrial.
Aprovou-se o cultivo em votação apertada na
terça-feira (8), mas o obscurantismo da claque bolsonarista pode impedir que o
Brasil se alinhe com meia centena de países onde o passo à frente foi dado.
Produtos derivados da maconha, como o
canabidiol, têm sido usados no tratamento de tipos graves de epilepsia, dores
crônicas e efeitos adversos de quimioterapia, por exemplo. Grupos de pacientes
e pais de crianças acometidas lutam há anos para processar a planta, que só
podem cultivar com autorizações judiciais provisórias.
Houve 17 manifestações a favor e 17 contra
o substitutivo do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), relator que desempatou a
votação. A decisão, conclusiva, implicaria remessa da norma diretamente ao
Senado, não fosse provável um recurso para submeter a questão ao plenário da
Câmara —basta o apoio de 52 parlamentares para tanto.
A falta de visão e compaixão se evidencia
na recusa a facilitar o acesso a medicamentos com benefício confirmado,
derivados da cânabis, por parte de deputados que preconizam remédios com
ineficácia comprovada contra a Covid-19. Osmar Terra (MDB-RS) é seu líder com
influência no Planalto.
O projeto nada tem de temerário e se limita
a sanar a principal deficiência da autorização do uso medicinal pela Anvisa,
que não admitia o plantio em território nacional. Como resultado, há produtos
canábicos à venda, porém importados e com preços inacessíveis para os doentes
de baixa renda.
As plantações de cânabis para medicina e de
cânhamo para industrialização só poderiam ser iniciadas por pessoas jurídicas,
empresas ou associações. O projeto aprovado estipula normas rígidas de
segurança, como alambrados ou muros e cercas eletrificadas.
Os adversários do texto se apegam ao
argumento de incentivo ao uso individual da maconha, como se a famigerada
guerra às drogas resultasse em algo além de prisões lotadas e matanças em
favelas.
Reacionários que obstruem a marcha da maconha medicinal temem, em realidade, o reconhecimento inevitável, pela opinião pública, dos efeitos terapêuticos. Essa seria uma mudança de mentalidade capaz de favorecer um debate mais amplo e racional do tema.
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