- Valor Econômico
Milícia militar temida por Castello se
forma com anuência civil
“Não
sendo milícia, as Forças Armadas não são arma para empreendimentos
anti-democráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua
coexistência”. Este é um trecho de carta do general Humberto Castello Branco,
então chefe do Estado-Maior do Exército, para generais e “organizações
subordinadas” (aqui a íntegra: bit.ly/3v6ZjaQ).
A carta é datada de 20 de março de 1964,
uma semana depois do comício da Central do Brasil, no Rio, em que o então
presidente João Goulart anunciara sua disposição de levar à frente as reformas
de base. Dez dias depois, os generais viram no discurso de Jango para
suboficiais e sargentos, na Cinelândia, a semente da milícia de que falava
Castello. No dia seguinte, o derrubaram.
Tivesse sido expedido pelo comandante do Exército, Paulo Sérgio Oliveira, o documento só seria conhecido em 2064. Como é da lavra de um golpista, está depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas. Desde que o general Eduardo Pazuello escapou de punição pelo comando do Exército, a carta circula em grupos de WhatsApp de generais da reserva - e da ativa - temerosos de que, desta vez, com sua anuência e do Congresso, se confirme o vaticínio de Castello.
A restauração da democracia, 21 anos
depois, deu-se sob o pressuposto de que as Forças Armadas não mais derrubariam
seu comandante-em-chefe e, sobretudo, preservariam a Constituição. Já ficou
claro que o texto não deu conta do capitão, mas as instituições ainda fingem
não ver. De todas, a mais lerda é o Congresso. Não se mexe nem mesmo para
afastar a concorrência militar na ocupação dos cargos que os parlamentares
almejam. Uma maioria que sempre negou apoio ao impeachment, sob o argumento de
que sua banalização corroi a democracia, é incapaz de defendê-la com a
restrição das frestas por onde se politizam os quartéis.
Tome-se, por exemplo, o projeto da deputada
Perpétua Almeida (PCdoB-AC) que muda o artigo 37 da Constituição e manda para a
reserva aqueles que saírem para exercer cargo na administração pública.
Estivesse em vigor, o presidente Jair Bolsonaro não teria o mesmo sucesso em
cooptar integrantes das Forças Armadas e da Polícia Militar, da ativa, como o
fez com Pazuello, ex-ministro da Saúde e atual titular da Secretaria de
Assuntos Estratégicos. Em troca da cumplicidade e conivência dos militares,
oferece cargos sem prejuízo de os oficiais virem a retomar suas carreiras e
promoções.
A PEC, que busca assinaturas há um ano,
ainda não tem adesão para ser pautada. Mesmo depois do gás que ganhou com
Pazuello no palanque de Bolsonaro, a proposta soma 124 assinaturas, 47 a menos
que o necessário para tramitar. Nem mesmo a oposição a subscreveu. Até a noite
de ontem restavam por assinar um deputado do PT, 17 do PSB, 13 do PDT, 28 do
PSDB, cinco do Cidadania, e a quase totalidade do PSD.
No partido de Gilberto Kassab, que reagiu
com veemência ao perdão a Pazuello, apenas 2 dos 36 deputados da bancada
subscreveram o pedido. No MDB, o apoio do presidente, deputado Baleia Rossi
(SP), que assinou o projeto, tampouco arrebanhou o partido. Apenas 5 dos 34 o
seguiram. A baixa adesão se agrava quando se leva em consideração que ao
assinar, o parlamentar não avaliza o teor, apenas a discussão. E escandaliza
quando se sabe que o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL) bateu o recorde
com 26 votações numa única sessão.
A parlamentar diz ter discutido a proposta
com os ex-comandantes das três Forças, de quem se aproximou ao presidir a Comissão
de Relações Exteriores e Defesa Nacional na Câmara e ocupar uma secretaria do
Ministério da Defesa na gestão Aldo Rebelo. Para atrair a adesão ao projeto
promete negociar a inclusão de uma quarentena, extensiva a integrantes do
Judiciário, para a participação em disputas eleitorais. Nem assim deslanchou.
Omitem-se, no melhor das hipóteses, porque
têm levado vantagem na coabitação em pastas ocupadas por militares, vide a
intimidade do Centrão com a Diretoria de Logística da Secretaria-Executiva do
Ministério da Saúde, intacta durante toda a gestão de Pazuello e esquecida pela
CPI. Na pior das hipóteses, a omissão deriva da convergência com o protagonismo
militar na política. Um parlamentar da oposição, por exemplo, diz que sua
condição de sindicalista o impede de ser a favor, por exemplo, da punição do
sargento que, em “live” com o deputado Major Vitor Hugo (PSL-SP) reclamou dos
soldos.
Não se trata de redesenhar o papel das
Forças Armadas sob uma correlação política desfavorável à democracia, mas de
tapar as frestas para que se transformem na milícia do poder de que falava o
velho general. Numa legislatura incapaz de barrar decretos que permitiram a
este governo liberar armas com o objetivo de formar milícias civis, não deveria
causar surpresa que autorizem as militares.
Não fosse o Supremo, que barrou decretos, o
exército de civis armados seria maior. Não fossem os governadores, que protelam
a entrega das bases de dados de seus policiais, pedidas pelo Planalto, o futuro
podia ser hoje. A omissão dos parlamentares só se explica pela crença de que
são donos do poder. O que não deixa de ser verdade. A dúvida é até quando.
Anitta
David Vélez não cultiva amizades com
parlamentares, não patrocina pesquisas de opinião, não frequenta o Palácio do
Planalto e nem assento na Febraban tem, mas acaba de mostrar que seu tino
político independe desses requisitos. Ao fazer da cantora Anitta, como informou
Guilherme Amado, não apenas garota-propaganda como acionista minoritária do
Nubank, o banqueiro colombiano revolucionou o conceito de risco político.
Rainha da periferia carioca, personalidade que rivaliza em seguidores nas redes sociais com o próprio presidente, Anitta já bateu boca com o ministro Ricardo Salles e denominou o estilo de Bolsonaro de “ignorância mental”. Fez de foto em frente ao ônibus para Ramos, zona norte do Rio, uma pose copiada por políticos de todos os partidos, e do seu clip no piscinão, um hit mundial. Na medida para um banco que pretende dominar o varejo popular. Num ambiente que vive à sombra do patrocinador de vermífugos contra o vírus da covid, o banqueiro parece sinalizar, com uma Anitta que funciona, que haverá vida no Brasil depois de Bolsonaro.
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