quinta-feira, 10 de junho de 2021

Maria Cristina Fernandes - O golpe além da bolha

- Valor Econômico

Milícia militar temida por Castello se forma com anuência civil

 “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são arma para empreendimentos anti-democráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua coexistência”. Este é um trecho de carta do general Humberto Castello Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, para generais e “organizações subordinadas” (aqui a íntegra: bit.ly/3v6ZjaQ).

A carta é datada de 20 de março de 1964, uma semana depois do comício da Central do Brasil, no Rio, em que o então presidente João Goulart anunciara sua disposição de levar à frente as reformas de base. Dez dias depois, os generais viram no discurso de Jango para suboficiais e sargentos, na Cinelândia, a semente da milícia de que falava Castello. No dia seguinte, o derrubaram.

Tivesse sido expedido pelo comandante do Exército, Paulo Sérgio Oliveira, o documento só seria conhecido em 2064. Como é da lavra de um golpista, está depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas. Desde que o general Eduardo Pazuello escapou de punição pelo comando do Exército, a carta circula em grupos de WhatsApp de generais da reserva - e da ativa - temerosos de que, desta vez, com sua anuência e do Congresso, se confirme o vaticínio de Castello.

A restauração da democracia, 21 anos depois, deu-se sob o pressuposto de que as Forças Armadas não mais derrubariam seu comandante-em-chefe e, sobretudo, preservariam a Constituição. Já ficou claro que o texto não deu conta do capitão, mas as instituições ainda fingem não ver. De todas, a mais lerda é o Congresso. Não se mexe nem mesmo para afastar a concorrência militar na ocupação dos cargos que os parlamentares almejam. Uma maioria que sempre negou apoio ao impeachment, sob o argumento de que sua banalização corroi a democracia, é incapaz de defendê-la com a restrição das frestas por onde se politizam os quartéis.

Tome-se, por exemplo, o projeto da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) que muda o artigo 37 da Constituição e manda para a reserva aqueles que saírem para exercer cargo na administração pública. Estivesse em vigor, o presidente Jair Bolsonaro não teria o mesmo sucesso em cooptar integrantes das Forças Armadas e da Polícia Militar, da ativa, como o fez com Pazuello, ex-ministro da Saúde e atual titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Em troca da cumplicidade e conivência dos militares, oferece cargos sem prejuízo de os oficiais virem a retomar suas carreiras e promoções.

A PEC, que busca assinaturas há um ano, ainda não tem adesão para ser pautada. Mesmo depois do gás que ganhou com Pazuello no palanque de Bolsonaro, a proposta soma 124 assinaturas, 47 a menos que o necessário para tramitar. Nem mesmo a oposição a subscreveu. Até a noite de ontem restavam por assinar um deputado do PT, 17 do PSB, 13 do PDT, 28 do PSDB, cinco do Cidadania, e a quase totalidade do PSD.

No partido de Gilberto Kassab, que reagiu com veemência ao perdão a Pazuello, apenas 2 dos 36 deputados da bancada subscreveram o pedido. No MDB, o apoio do presidente, deputado Baleia Rossi (SP), que assinou o projeto, tampouco arrebanhou o partido. Apenas 5 dos 34 o seguiram. A baixa adesão se agrava quando se leva em consideração que ao assinar, o parlamentar não avaliza o teor, apenas a discussão. E escandaliza quando se sabe que o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL) bateu o recorde com 26 votações numa única sessão.

A parlamentar diz ter discutido a proposta com os ex-comandantes das três Forças, de quem se aproximou ao presidir a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional na Câmara e ocupar uma secretaria do Ministério da Defesa na gestão Aldo Rebelo. Para atrair a adesão ao projeto promete negociar a inclusão de uma quarentena, extensiva a integrantes do Judiciário, para a participação em disputas eleitorais. Nem assim deslanchou.

Omitem-se, no melhor das hipóteses, porque têm levado vantagem na coabitação em pastas ocupadas por militares, vide a intimidade do Centrão com a Diretoria de Logística da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde, intacta durante toda a gestão de Pazuello e esquecida pela CPI. Na pior das hipóteses, a omissão deriva da convergência com o protagonismo militar na política. Um parlamentar da oposição, por exemplo, diz que sua condição de sindicalista o impede de ser a favor, por exemplo, da punição do sargento que, em “live” com o deputado Major Vitor Hugo (PSL-SP) reclamou dos soldos.

Não se trata de redesenhar o papel das Forças Armadas sob uma correlação política desfavorável à democracia, mas de tapar as frestas para que se transformem na milícia do poder de que falava o velho general. Numa legislatura incapaz de barrar decretos que permitiram a este governo liberar armas com o objetivo de formar milícias civis, não deveria causar surpresa que autorizem as militares.

Não fosse o Supremo, que barrou decretos, o exército de civis armados seria maior. Não fossem os governadores, que protelam a entrega das bases de dados de seus policiais, pedidas pelo Planalto, o futuro podia ser hoje. A omissão dos parlamentares só se explica pela crença de que são donos do poder. O que não deixa de ser verdade. A dúvida é até quando.

Anitta

David Vélez não cultiva amizades com parlamentares, não patrocina pesquisas de opinião, não frequenta o Palácio do Planalto e nem assento na Febraban tem, mas acaba de mostrar que seu tino político independe desses requisitos. Ao fazer da cantora Anitta, como informou Guilherme Amado, não apenas garota-propaganda como acionista minoritária do Nubank, o banqueiro colombiano revolucionou o conceito de risco político.

Rainha da periferia carioca, personalidade que rivaliza em seguidores nas redes sociais com o próprio presidente, Anitta já bateu boca com o ministro Ricardo Salles e denominou o estilo de Bolsonaro de “ignorância mental”. Fez de foto em frente ao ônibus para Ramos, zona norte do Rio, uma pose copiada por políticos de todos os partidos, e do seu clip no piscinão, um hit mundial. Na medida para um banco que pretende dominar o varejo popular. Num ambiente que vive à sombra do patrocinador de vermífugos contra o vírus da covid, o banqueiro parece sinalizar, com uma Anitta que funciona, que haverá vida no Brasil depois de Bolsonaro.

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