quinta-feira, 10 de junho de 2021

Malu Gaspar – Crônica de uma fake news bolsonarista

- O Globo

Não se pode dizer que surpreende o presidente Jair Bolsonaro ter propagado fake news sobre os registros oficiais de mortes por Covid-19, como ele fez na última segunda-feira. Mas, mesmo que pareça, não dá para dizer que foi mais um lance igual aos outros que vivemos nesta trágica distopia nacional. Porque, embora Bolsonaro pareça sempre apertar a mesma tecla, cada movimento visa a fazê-lo avançar um passo a mais na meticulosa estratégia de avacalhar as instituições da democracia brasileira.

Já vimos outros episódios dessa série de mau gosto. Primeiro, Bolsonaro faz um ataque a uma instituição qualquer. Se ninguém fizer nada, avança mais um pouco. Se resistirem, recua, mas mobiliza sua base para manter o ataque original circulando. Enquanto isso, procura uma chance de tentar de novo, contra outro alvo. O objetivo final é claro: seguir nesse rumo, avançando e recuando, até que esteja tudo dominado pelo modus operandi bolsonarista.

O que se viu na segunda-feira foi mais um passo do presidente em direção a esse objetivo. No cercadinho reservado aos seus seguidores, no Palácio da Alvorada, ele contou uma mentira. Disse que, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), cerca de 50% dos óbitos registrados por Covid-19 em 2020 afinal não ocorreram por causa da doença. “Esse relatório saiu há alguns dias, logicamente que a imprensa não vai divulgar. E, como é do Tribunal de Contas da União, ninguém queira me criticar por causa disso.”

Depois de passar meses afirmando, por sua conta e risco, que governadores, prefeitos, os comunistas e a grávida de Taubaté inflam o número de mortes desde que a pandemia começou sem convencer ninguém fora de sua bolha, Bolsonaro decidiu ir além. Apropriou-se da chancela do Tribunal de Contas da União e ficou esperando para ver se a história colava.

Fazia apenas quatro dias que ele conseguira um avanço importante rumo à meta de dominação do Exército pelo bolsonarismo, ao forçar a barra contra a aplicação de punição ao general Pazuello por ter subido no palanque de um ato político a seu favor.

É possível que, no embalo da vitória sobre os generais, o presidente da República não esperasse a reação dos ministros do tribunal. Poucas horas depois de o vídeo com sua fala circular nas redes, o TCU divulgou uma nota dizendo que o tal relatório não existia.

Soube-se depois que o que havia era uma anotação num relatório do início da pandemia, observando que usar o número de casos de Covid-19 como critério de distribuição de recursos para o combate à doença poderia levar à supernotificação.

Mas não há prova de que isso de fato tenha acontecido, nem foi feita qualquer estimativa no tribunal a esse respeito. Pelo contrário: depois de estudar o assunto, os próprios técnicos consideraram inviável fazer uma verificação, já que é prerrogativa dos médicos dizer, no atestado de óbito, qual a causa mortis de cada paciente, e não haveria como fazer autópsias generalizadas para saber quem mentiu e por quê.

Para piorar, descobriu-se que, na noite anterior à fala no cercadinho, um servidor bolsonarista do TCU compartilhou entre os colegas um documento com a estimativa mandrake, mencionando os tais 50% a mais de mortes.

Foi esse documento que Bolsonaro usou como base. O funcionário em questão, Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, já havia sido até indicado pelo presidente para compor a diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, mas não foi liberado pelo TCU para assumir o cargo.

Ao contrário do que ocorreu no Exército, desta vez o servidor que atuou contra a instituição para favorecer os interesses particulares do presidente foi imediatamente afastado pela corregedoria do TCU, que abriu investigação interna e pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito.

E Bolsonaro, que nunca falou diretamente a respeito da decisão do Exército sobre Pazuello, desta vez fez outra declaração pública dizendo que, sim, tinha errado e que os dados que divulgara não eram do tribunal.

Ainda assim, continuou sustentando a tese da supernotificação de casos. E disse que estava ordenando à Corregedoria-Geral da União (CGU) que investigasse os registros de mortes por Covid-19.

O capitão cumpriu, portanto, o roteiro, mas não conseguiu avançar com seu exército sobre mais uma trincheira. A única vantagem de estarmos vivendo há tanto tempo sob esse mesmo modus operandi é que já sabemos o que vem por aí: um novo ataque a mais uma instituição, que o presidente certamente já está mirando.

A questão é que não é difícil saber que o ataque virá, mas é impossível prever até quando os alvos resistirão.

 

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