- O Globo
Não se pode dizer que surpreende o
presidente Jair Bolsonaro ter propagado fake news sobre os registros oficiais
de mortes por Covid-19, como ele fez na última segunda-feira. Mas, mesmo que pareça,
não dá para dizer que foi mais um lance igual aos outros que vivemos nesta
trágica distopia nacional. Porque, embora Bolsonaro pareça sempre apertar
a mesma tecla, cada movimento visa a fazê-lo avançar um passo a mais na
meticulosa estratégia de avacalhar as instituições da democracia brasileira.
Já vimos outros episódios dessa série de
mau gosto. Primeiro, Bolsonaro faz um ataque a uma instituição qualquer. Se
ninguém fizer nada, avança mais um pouco. Se resistirem, recua, mas mobiliza sua
base para manter o ataque original circulando. Enquanto isso, procura uma
chance de tentar de novo, contra outro alvo. O objetivo final é claro: seguir
nesse rumo, avançando e recuando, até que esteja tudo dominado pelo modus
operandi bolsonarista.
O que se viu na segunda-feira foi mais um passo do presidente em direção a esse objetivo. No cercadinho reservado aos seus seguidores, no Palácio da Alvorada, ele contou uma mentira. Disse que, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), cerca de 50% dos óbitos registrados por Covid-19 em 2020 afinal não ocorreram por causa da doença. “Esse relatório saiu há alguns dias, logicamente que a imprensa não vai divulgar. E, como é do Tribunal de Contas da União, ninguém queira me criticar por causa disso.”
Depois de passar meses afirmando, por sua
conta e risco, que governadores, prefeitos, os comunistas e a grávida de
Taubaté inflam o número de mortes desde que a pandemia começou sem convencer
ninguém fora de sua bolha, Bolsonaro decidiu ir além. Apropriou-se da chancela
do Tribunal de Contas da União e ficou esperando para ver se a história colava.
Fazia apenas quatro dias que ele conseguira
um avanço importante rumo à meta de dominação do Exército pelo
bolsonarismo, ao forçar a barra contra a aplicação de punição ao general Pazuello por
ter subido no palanque de um ato político a seu favor.
É possível que, no embalo da vitória sobre
os generais, o presidente da República não esperasse a reação dos ministros do
tribunal. Poucas horas depois de o vídeo com sua fala circular nas redes, o TCU
divulgou uma nota dizendo que o tal relatório não existia.
Soube-se depois que o que havia era uma
anotação num relatório do início da pandemia, observando que usar o número de
casos de Covid-19 como critério de distribuição de recursos para o combate à
doença poderia levar à supernotificação.
Mas não há prova de que isso de fato tenha
acontecido, nem foi feita qualquer estimativa no tribunal a esse respeito. Pelo
contrário: depois de estudar o assunto, os próprios técnicos consideraram
inviável fazer uma verificação, já que é prerrogativa dos médicos dizer, no
atestado de óbito, qual a causa mortis de cada paciente, e não haveria como
fazer autópsias generalizadas para saber quem mentiu e por quê.
Para piorar, descobriu-se que, na noite
anterior à fala no cercadinho, um servidor bolsonarista do TCU compartilhou
entre os colegas um documento com a estimativa mandrake, mencionando os tais
50% a mais de mortes.
Foi esse documento que Bolsonaro usou como
base. O funcionário em questão, Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, já
havia sido até indicado pelo presidente para compor a diretoria do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, mas não foi liberado pelo TCU para assumir o cargo.
Ao contrário do que ocorreu no Exército,
desta vez o servidor que atuou contra a instituição para favorecer os
interesses particulares do presidente foi imediatamente afastado pela
corregedoria do TCU, que abriu investigação interna e pediu à Polícia Federal a
abertura de inquérito.
E Bolsonaro, que nunca falou diretamente a
respeito da decisão do Exército sobre Pazuello, desta vez fez outra declaração
pública dizendo que, sim, tinha errado e que os dados que divulgara não eram do
tribunal.
Ainda assim, continuou sustentando a tese
da supernotificação de casos. E disse que estava ordenando à Corregedoria-Geral
da União (CGU) que investigasse os registros de mortes por Covid-19.
O capitão cumpriu, portanto, o roteiro, mas
não conseguiu avançar com seu exército sobre mais uma trincheira. A única
vantagem de estarmos vivendo há tanto tempo sob esse mesmo modus operandi é que
já sabemos o que vem por aí: um novo ataque a mais uma instituição, que o
presidente certamente já está mirando.
A questão é que não é difícil saber que o
ataque virá, mas é impossível prever até quando os alvos resistirão.
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