domingo, 20 de outubro de 2024

Bernardo Mello Franco - Boulos está atrasado

O Globo

Candidato diz que votação de Marçal "acendeu um alerta" na esquerda, mas discurso do empreendedorismo já vence eleições em SP desde 2016

Na quinta-feira, Ricardo Nunes deu uma desculpa esfarrapada para faltar a mais um debate em São Paulo. Na ausência do prefeito, Guilherme Boulos concedeu uma entrevista. A conversa revisitou temas como o apagão e as pesquisas eleitorais. Na passagem mais reveladora, o candidato ensaiou uma autocrítica sobre as dificuldades da esquerda nas urnas.

Boulos disse que a votação de Pablo Marçal “acendeu um alerta” no campo progressista. “Tivemos a compreensão e a humildade de fazer um mea-culpa e uma autocrítica. Nós não dialogamos com um setor importante dos trabalhadores”, afirmou ao consórcio Folha/UOL/RedeTV!.

O candidato admitiu que a esquerda “deixou de falar” com eleitores que desistiram do emprego formal para “buscar sua prosperidade de outra forma, por conta própria”. “Na ausência de diálogo com este segmento, a extrema direita ocupou o espaço”, constatou.

O diagnóstico de Boulos está correto, mas parece atrasado. O fenômeno que ele descreve já atropela seu grupo político há pelo menos três eleições paulistanas. Despontou em 2016, quando o empresário João Doria, dono da revista “Caviar Lifestyle”, apresentou-se como “João Trabalhador”. Ele venceu no primeiro turno, triunfando em redutos tradicionais do PT.

No ano seguinte, a Fundação Perseu Abramo apresentou a pesquisa “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”. O documento alertou os petistas para uma transformação em sua base social. Os trabalhadores haviam comprado a “ideologia do mérito” e a teologia da prosperidade, propagada por pastores evangélicos. Passavam a ver o Estado como inimigo e o esforço individual como único caminho para melhorar de vida.

“No imaginário da população não há luta de classes”, anotaram os pesquisadores. “Para os entrevistados, o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, capital e trabalho. O grande confronto se dá entre Estado e cidadãos”, escreveram.

O estudo mostrou que a pregação liberal havia seduzido trabalhadores autônomos ou precários, que passavam a se identificar como empreendedores: “Muitos assumem o discurso propagado pela elite e pelas classes médias apontando a burocracia e os altos impostos como empecilhos ao empreendedorismo”.

Movidos pelo sonho de enriquecer, moradores da periferia passavam a se guiar por uma lógica individualista, que liga a ascensão social à disciplina e à força de vontade. “A noção de público é menos associada àquilo que pertence a todos e mais com o que é gratuito e de má qualidade”, afirmou o estudo da Perseu Abramo.

O texto terminou com uma sugestão que parece não ter sido levada a sério: sem abrir mão de seus valores, a esquerda precisava “produzir narrativas mais consistentes e menos maniqueístas ou pejorativas” sobre temas como família, religião e segurança.

A pesquisa de 2017 ajuda a entender a eleição de 2024, quando um aventureiro que demoniza o Estado e vende cursos sobre a “arte de prosperar” faturou 28% dos votos. É improvável que Boulos consiga se aproximar dos eleitores do coach com promessas de última hora, como a isenção de rodízio para motoristas de aplicativo.


3 comentários:

Mais um amador disse...

" sem abrir mão de seus valores, a esquerda precisava “produzir narrativas mais consistentes e menos maniqueístas ou pejorativas” sobre temas como família, religião e segurança. "

😏😏😏

Anônimo disse...

Não adianta, o que esse pessoal da esquerda morre de saudade é de tudo que rolou no tempo de Lula 2000/2008, onde só eles decidiam, não tinham oposição, roubava e não eram incomodados.....

ADEMAR AMANCIO disse...

Se Boulos fosse menos agressivo talvez ganhasse todas as eleições do mundo.