quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Ano de 2024 foi ruim para democracia e direitos humanos no mundo - Rui Tavares

Folha de S. Paulo

História explica como as nossas ações hoje podem ser decisivas para o futuro

Por estes dias há cem anos, Adolf Hitler foi libertado da prisão muito antes de cumprir a pena de cinco anos a que tinha sido condenado por uma tentativa fracassada de golpe de Estado. E mesmo nos parcos nove meses em que esteve preso, o líder nazista usufruiu de condições excepcionais: uma cela espaçosa e arejada, a possibilidade de receber visitas e o acesso ao secretário a quem ditou "Mein Kampf", o livro que faria dele um homem rico.

Depois de tanto mimo, a esperança das autoridades era que Hitler saísse grato e respeitoso, e foi isso que disseram à imprensa de então. Em 21 de dezembro de 1924, o jornal americano The New York Times publicava o título: "Hitler Domado pela Prisão". Prosseguia: "o seu comportamento durante a prisão convenceu as autoridades de que ele, como a sua organização […], já não devem ser temidos".

E terminava com uma profecia que só nos pode fazer sorrir —"Acredita-se que se retirará para a vida privada e que regressará à Áustria, o país do seu nascimento". Uma guerra mundial, um holocausto e milhões de mortos nos fazem mais sabedores do que os nossos antepassados de 1924.

Não foi só na Alemanha que 1924 foi o ano em que, se as ameaças ao Estado de Direito tivessem sido levadas mais a sério, muita história maldita poderia ter sido evitada. Na Itália, Mussolini já estava no poder. Tinha até conseguido reforçar a sua posição em eleições fraudulentas nas quais teve apoio de partidos tradicionais, de conservadores a progressistas, num chamado listão — "il listone" — de candidatos a deputados. Só socialistas e comunistas ficaram de fora, e só um solitário socialista, chamado Giacomo Matteotti, teve a coragem de denunciar as violências e abusos dos fascistas num discurso parlamentar em 30 de maio de 1924.

Onze dias depois, Matteotti estava morto, e toda a gente percebeu que era Mussolini que estava, de uma maneira ou de outra, por detrás de seus assassinos. Por um momento, a indignação popular foi de tal ordem que foi possível acreditar que o rei Vitorio Emmanuelle 3º iria demitir Mussolini e fazer cair o seu governo. Em vez disso, o rei hesitou e manteve o líder fascista no poder.

O que teria sido a história se Hitler tivesse pagado como devia pelo seu golpismo, e Mussolini, pelo seu patrocínio à violência e aos assassinatos políticos? Claro que é impossível prever todas as consequências. Mas ao menos alguém teria cumprido com o seu dever. E quando isso acontece, a democracia e os direitos humanos têm um pouco mais de esperança. Há gente que sonha mais e sofre menos; a humanidade vale sempre a pena.

Cem anos depois, 2024 foi um ano em que correu mal quase tudo o que havia para correr mal à democracia, ao Estado de Direito e aos direitos humanos no mundo. A China, a Rússia e os Estados Unidos são governados por autoritários nacionalistas; eles e seus imitadores, como Netanyahu, continuam a infligir um desumano tratamento a milhões de pessoas, da Ucrânia à Palestina. Os mais ingênuos acreditam que as ambições de autoritários não levarão ao resultado a que sempre levaram.

Cem anos depois de 1924, não temos o luxo da ingenuidade. Mas ao menos sabemos que todas as nossas ações são decisivas. Levemos essa certeza para o ano que agora começa.

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