Folha de S. Paulo
História explica como as nossas ações hoje
podem ser decisivas para o futuro
Por estes dias há cem anos, Adolf
Hitler foi libertado da prisão muito antes de cumprir a pena de
cinco anos a que tinha sido condenado por uma tentativa fracassada de golpe de
Estado. E mesmo nos parcos nove meses em que esteve preso, o líder
nazista usufruiu de condições excepcionais: uma cela espaçosa e arejada, a
possibilidade de receber visitas e o acesso ao secretário a quem ditou "Mein
Kampf", o livro que faria dele um homem rico.
Depois de tanto mimo, a esperança das
autoridades era que Hitler saísse grato e respeitoso, e foi isso que disseram à
imprensa de então. Em 21 de dezembro de 1924, o jornal americano The New York Times publicava
o título: "Hitler Domado pela Prisão". Prosseguia: "o seu
comportamento durante a prisão convenceu as autoridades de que ele, como a sua
organização […], já não devem ser temidos".
E terminava com uma profecia que só nos pode fazer sorrir —"Acredita-se que se retirará para a vida privada e que regressará à Áustria, o país do seu nascimento". Uma guerra mundial, um holocausto e milhões de mortos nos fazem mais sabedores do que os nossos antepassados de 1924.
Não foi só na Alemanha que
1924 foi o ano em que, se as ameaças ao Estado de Direito tivessem sido levadas
mais a sério, muita história maldita poderia ter sido evitada. Na Itália,
Mussolini já estava no poder. Tinha até conseguido reforçar a sua posição em
eleições fraudulentas nas quais teve apoio de partidos tradicionais, de
conservadores a progressistas, num chamado listão — "il listone" — de
candidatos a deputados. Só socialistas e comunistas ficaram de fora, e só um
solitário socialista, chamado Giacomo Matteotti, teve a coragem de denunciar as
violências e abusos dos fascistas num discurso parlamentar em 30 de maio de
1924.
Onze dias depois, Matteotti estava morto, e
toda a gente percebeu que era Mussolini que
estava, de uma maneira ou de outra, por detrás de seus assassinos. Por um
momento, a indignação popular foi de tal ordem que foi possível acreditar que o
rei Vitorio Emmanuelle 3º iria demitir Mussolini e fazer cair o seu governo. Em
vez disso, o rei hesitou e manteve o líder fascista no poder.
O que teria sido a história se Hitler tivesse
pagado como devia pelo seu golpismo, e Mussolini, pelo seu patrocínio à
violência e aos assassinatos políticos? Claro que é impossível prever todas as
consequências. Mas ao menos alguém teria cumprido com o seu dever. E quando
isso acontece, a democracia e os direitos
humanos têm um pouco mais de esperança. Há gente que sonha mais
e sofre menos; a humanidade vale sempre a pena.
Cem anos depois, 2024 foi um ano em que
correu mal quase tudo o que havia para correr mal à democracia, ao Estado de
Direito e aos direitos humanos no mundo. A China,
a Rússia e
os Estados
Unidos são governados por autoritários nacionalistas; eles e
seus imitadores, como Netanyahu, continuam a infligir um desumano tratamento a
milhões de pessoas, da Ucrânia à Palestina.
Os mais ingênuos acreditam que as ambições de autoritários não levarão ao
resultado a que sempre levaram.
Cem anos depois de 1924, não temos o luxo da
ingenuidade. Mas ao menos sabemos que todas as nossas ações são decisivas.
Levemos essa certeza para o ano que agora começa.
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