sábado, 11 de janeiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Posse ilegítima de Maduro exige mais pressão do Brasil

O Globo

Em conjunto com a comunidade internacional, país precisa reforçar a defesa da democracia no continente

A posse de Nicolás Maduro como presidente da Venezuela nesta sexta-feira confirma seu desprezo pela vontade popular. Diante de derrota humilhante no pleito presidencial de julho do ano passado, escondeu os boletins de urnas, se declarou vencedor e assumiu, sem disfarces, ser um ditador. Não satisfeito em roubar as eleições, mandou a Justiça prender Edmundo González, o oposicionista consagrado pelo voto que acabou saindo do país. De lá para cá, a repressão sistemática se manteve intacta. Apoiado pelas Forças Armadas, Maduro desistiu de parecer legítimo.

Como lidar com um vizinho desse tipo é um dos maiores problemas da política externa. A embaixadora brasileira em Caracas, Glivânia Oliveira, esteve na cerimônia de posse na presença de diplomatas de México, Colômbia e representantes de ditaduras como Cuba, Rússia e Nicarágua. Estados Unidos e União Europeia não compareceram. Se a participação da embaixadora representar a volta da fracassada política de apaziguamento, o Itamaraty estará cometendo um erro enorme. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recusou o convite, mas comitivas do PT viajaram para a Venezuela. Dois dias depois da defesa da democracia nos eventos do 8 de Janeiro, integrantes do partido festejaram a posse de um tirano.

O caminho a ser seguido pelo Itamaraty deve estar de acordo com os valores da sociedade brasileira. O governo precisa manter a posição de não reconhecer o resultado da farsa eleitoral e apoiar todas as medidas futuras para forçar Maduro a promover uma transição pacífica de poder. É possível que Donald Trump decida abrir mão dos contratos dados a petroleiras americanas na Venezuela para adotar postura mais dura. Caso seja essa a política adotada, a defesa da democracia pode ser uma das áreas de cooperação entre o novo governo americano e o brasileiro.

Apesar da necessidade de aumentar a pressão sobre o regime ditatorial, o rompimento das relações não é desejável. Brasil e Venezuela dividem uma fronteira longa e porosa numa região com ação do crime e do garimpo. A preservação da floresta, a proteção de indígenas e o fluxo de refugiados dependem de canais de comunicação e cooperação mínima. Será desafiador equilibrar todos esses objetivos com um pária sem escrúpulo algum.

Nas relações com Maduro, o presidente Lula passou por uma tortuosa curva de aprendizado. As tentativas de manter um bom relacionamento contaram com episódios constrangedores. Em 2023, o venezuelano foi recebido com honras em Brasília. Meses depois, Lula afirmou em entrevista que a Venezuela tinha mais eleições que o Brasil e chegou ao absurdo de tentar relativizar o conceito de democracia.

A mudança de tratamento foi tardia, mas aconteceu. Nas vésperas das eleições na Venezuela, o presidente se disse assustado com as declarações de Maduro de que, se perdesse o pleito, haveria “um banho de sangue”. Apesar de o PT ter descrito o roubo eleitoral escancarado como uma “jornada democrática e soberana”, Lula não chancelou a fraude. Junto com os governos da Colômbia e do México, tentou, sem sucesso, uma saída negociada. Maduro nem fingiu que daria ouvidos. É hora de redobrar a coação. Maduro parece temer a reimposição de sanções. No ano passado, a Venezuela aprovou uma lei que prevê 25 anos de prisão para quem defender tais medidas.

Lentidão para apontar causa de surto no litoral paulista deve servir de alerta

O Globo

Sem a identificação da fonte de contaminação do norovírus, mais pessoas correm riscos de infecção

Milhares de pessoas que aproveitaram o período das festas de fim de ano e das férias de verão para desfrutar o litoral de São Paulo tiveram de trocar as cadeiras de praia pelas dos prontos-socorros da região em busca de atendimento médico para sintomas como vômitos e diarreia. Nas últimas semanas, unidades de saúde do Guarujá e de cidades vizinhas ficaram sobrecarregadas com o aumento no fluxo de doentes. Em meio a tudo isso, desinformação e incertezas.

Na quarta-feira, a Secretaria estadual da Saúde de São Paulo confirmou a presença de norovírus em amostras de fezes coletadas no Guarujá e em Praia Grande, na Baixada Santista. A pasta classificou a situação como um surto. O norovírus costuma causar doenças gastrointestinais de curta duração (em torno de três dias). Com alta capacidade infecciosa, provoca sintomas como diarreia, vômitos, náuseas, febre, dor abdominal, muscular e de cabeça, além de cansaço.

A transmissão costuma se dar por meio da água, de alimentos contaminados ou do contato com pessoas infectadas. Não é incomum em cidades do litoral brasileiro. Nos últimos anos, foram registrados surtos de norovírus em Salvador (BA) e Florianópolis (SC). Por enquanto, ainda não se sabe a fonte de transmissão. A Secretaria da Saúde disse estar investigando a origem do problema com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) e municípios da Baixada Santista.

Ao menos já se sabe alguma coisa. Até o anúncio feito pela Secretaria da Saúde, imperava a falta de informações. Era nítido que algum problema havia. No Guarujá, onde a situação ganhou dimensões maiores, foram registrados pelo menos 2.064 atendimentos em dezembro, ante 1.457 em novembro. Mas não se sabia se os casos de gastroenterite estavam ligados a um vírus, a uma bactéria ou a um parasita. Autoridades sanitárias da região chegaram a duvidar da existência de um surto, atribuindo o aumento de casos ao calor e ao grande número de visitantes. A questão se torna mais intrigante porque os sintomas são observados tanto em quem foi à praia quanto em quem não foi.

A prefeitura do Guarujá chegou a suspeitar de vazamento clandestino de esgoto para as praias, cena nada incomum nas cidades litorâneas, mas a Sabesp informou que os sistemas de água e esgoto da Baixada Santista são controlados 24 horas por dia e estavam operando normalmente.

Um surto que afeta milhares de pessoas, obrigando-as a procurar os serviços de emergência em pleno lazer, não pode permanecer um mistério. Estado e municípios da região precisam descobrir a fonte de contaminação para que o problema possa ser sanado ou, caso já esteja resolvido, se tomem medidas para não se repetir. Que milhares de pessoas aportem nos balneários nesta época do ano não deveria surpreender ninguém. O mínimo que se espera dos gestores públicos é as cidades à beira-mar estarem preparadas para o verão.

3ª posse de Maduro exibe ditadura mais explícita e isolada

Folha de S. Paulo

Fraude eleitoral descarada e repressão sangrenta a opositores na Venezuela resultaram no afastamento até do governo Lula

Quando Nicolás Maduro foi empossado como presidente pela primeira vez, em 2013, a democracia venezuelana já se encontrava profundamente degradada. Seu antecessor e mentor, Hugo Chávez, aproveitara a popularidade resultante de preços recordes do petróleo para aparelhar as instituições e se perpetuar no poder, de 1999 até a morte naquele ano.

Apesar de todo o poderio do governo, a vitória eleitoral de Maduro se deu por margem minúscula, de 50,6% dos votos.

Na segunda posse, em 2019, a bonança econômica havia dado lugar a uma catástrofe econômica e humanitária —e a Venezuela já era governada de modo ditatorial. O regime não aceitara a vitória da oposição no pleito para o Legislativo e criara uma farsesca Assembleia Constituinte; adversários na disputa pelo Executivo foram cerceados pelo Judiciário.

Para viabilizar a terceira posse, ocorrida nesta sexta-feira (10), o chavismo abandonou os parcos escrúpulos democráticos que ainda encenava. Fraudou descaradamente as eleições do ano passado, depois de haver prometido uma disputa limpa em acordo endossado por Estados Unidos, Brasil e outros países; o real vencedor, Edmundo González, está exilado na Espanha.

A repressão se tornou mais sanguinária. Em outubro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU documentou 25 assassinatos e mais de 1.500 prisões arbitrárias, das quais nem crianças escaparam. Nos últimos dias se retomou com intensidade a perseguição a adversários. A oposição afirma que a líder María Corina Machado chegou a ser detida.

Foi necessária a desmoralização aos olhos do mundo para que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se afastasse da ditadura e não reconhecesse o resultado proclamado das eleições. Até então Lula se desmanchava em mesuras a Maduro e chegou pontificar que "o conceito de democracia é relativo" ao discorrer sobre o regime do aliado ideológico.

Outros líderes da esquerda continental foram mais assertivos, como o presidente do Chile, Gabriel Boric, que acusou a fraude e, mais recentemente, retirou o embaixador em Caracas. Seu congênere colombiano, Gustavo Petro, divulgou vídeo denunciando as violações de direitos humanos no país fronteiriço.

A aprofundar o isolamento de Maduro, em poucos dias Donald Trump retomará o governo dos EUA —desde seu primeiro mandato, o republicano não reconhecia o ditador como presidente. A dúvida é se pode haver alguma negociação envolvendo a deportação de venezuelanos.

Resta ao regime o apoio de Rússia, China, Turquia, Irã e outros países do eixo antiocidental, incluindo as ditaduras alinhadas em Cuba e Nicarágua. No Brasil, a despeito do atrito com Lula, permanece o aplauso do PT e de entidades diversas de esquerda. Não deixa de ser espantoso para quem solapou a democracia e fez da Venezuela o país mais pobre da América do Sul.

O verão e a virose

Folha de S. Paulo

Saneamento falho é suspeito por surto no litoral paulista; faltam respostas do governo Tarcísio, da Sabesp e de prefeitos

Com desemprego em baixa e dólar em alta, aguardava-se uma maré montante de paulistas desencorajados a viajar para o exterior assomando à bela orla do estado. Só não contavam que, ao descer a serra, mergulhariam nas mazelas do Brasil.

Dezenas de milhares de turistas e moradores lotam prontos-socorros do litoral sul e da Baixada Santista até o município de São Sebastião, com epicentro em Guarujá. Um surto de virose se espalha por mais de 200 km de praias, disseminando sintomas gastrointestinais como vômitos, dores abdominais e diarreias.

O mal-estar raramente se mostra muito ameaçador, pode ser tratado com abundante hidratação e, em geral, se dissipa em três dias. Mesmo assim, foi quanto bastou para estragar Natal e Ano-Novo de legiões de banhistas.

O Instituto Adolfo Lutz identificou norovírus em amostras de fezes colhidas na região, a indicar qual seria o patógeno responsável pelo adoecimento de tanta gente em busca de sol e descanso. Como vários outros vírus e bactérias causadores de gastroenterite, ele também se transmite por água e alimentos contaminados.

As suspeitas se voltaram para a água encanada, dada a notória deficiência do saneamento básico no litoral. Embora algumas cidades costeiras contem 95% ou mais de habitantes com descarte adequado de esgotos, outras exibem 20% sem acesso a ele, como Cubatão; até o abastado Guarujá estacionou em 89% de cobertura.

Com o afluxo de turistas e as copiosas chuvas de verão, ao que parece turbinadas pelas mudanças climáticas em curso, o sistema fica sobrecarregado. Posta na berlinda, a recém-privatizada Sabesp rebateu críticas da Prefeitura de Guarujá e asseverou que a rede opera normalmente.

Fato é que, nesta sexta-feira (10), 51 das 175 praias paulistas monitoradas pela Cetesb se apresentavam impróprias para banho. A própria secretaria estadual da Saúde recomenda não entrar no mar nas 24 horas após as chuvas, orientação que beira a desfaçatez numa estação com temporais quase todos os dias.

federação de hotéis, bares e restaurantes cobra do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) ações para combater as pragas que assolam o litoral. Não só as sanitárias, como o norovírus, mas também as de segurança pública, como arrastões no Guarujá.

Se tudo estivesse funcionando, não haveria surto de norovirose. Sabesp, Cetesb, o governador e prefeitos devem respostas mais efetivas à crise. É inaceitável que turistas no estado mais rico da nação continuem expostos a doenças de terceiro mundo.

Mais um ano de inflação fora da meta

O Estado de S. Paulo

Pior do que a inflação elevada no ano passado é a perspectiva de que os preços continuarão a subir neste ano e a certeza de que o governo não fará sua parte para evitar o aumento dos juros

Sem novidades, a inflação encerrou o ano passado em 4,83%, rompendo a meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional, de 3%, bem como seu limite superior, de 1,5 ponto porcentual (p.p.). O fato de que o índice não ultrapassou os 5% certamente trouxe alívio ao governo, que, como esperado, minimizou o resultado e o atribuiu à seca. O problema, no entanto, está na tendência, longe de trazer tranquilidade a quem quer que seja.

De fato, os alimentos foram os vilões do IPCA, e muito disso se deve a fatores climáticos como o El Niño, as enchentes no Rio Grande do Sul e a estiagem em diversas outras regiões. Grupo de maior peso na inflação medida pelo IBGE, alimentação e bebidas subiu 7,69% no ano passado e contribuiu com um terço do índice oficial. O café aumentou impressionantes 39,6%; as carnes, 20,84%; o leite do tipo longa vida, 18,83%; e as frutas, 12,12%.

Com a perspectiva de uma safra melhor neste ano, o comportamento dos itens alimentícios deve arrefecer um pouco, mas tudo indica que permanecerá acima da inflação geral. Se os alimentos fossem o único problema, o governo realmente teria motivos para comemorar, mas há muitas razões para colocar as barbas de molho. Todos os outros oito grupos que compõem o IPCA também registraram aumento de preços no ano passado, em especial saúde e cuidados pessoais, influenciado pelos planos de saúde e produtos farmacêuticos, e transportes, puxado pelo preço da gasolina e do etanol.

Já no mês passado, o IPCA subiu 0,52%. Foi o resultado mais baixo para o mês desde 2018, mas sua composição veio pior do que se esperava. O índice de difusão mostrou que 69% dos itens monitorados pelo IBGE tiveram alta em dezembro, maior nível desde maio de 2022. Oito dos nove grupos que compõem o IPCA subiram. Os núcleos, que desconsideram distúrbios decorrentes de choques temporários, também se elevaram – tanto no caso de serviços, pressionados há meses em razão da demanda aquecida, quanto no de bens industriais, consequência da desvalorização cambial registrada nas últimas semanas do ano.

A percepção geral de que tudo subiu de preço é real, e a sensação de que os aumentos vão continuar também é. Há razões para se preocupar. O IGP-M, índice de inflação calculado pela Fundação Getulio Vargas que é referência para o reajuste de aluguéis, fechou o ano em 6,54%. Diferentemente do IPCA, mais estável e que acompanha o consumo das famílias, o IGP-M é um índice mais volátil e reflete os preços do atacado e do dólar. Apesar disso, no médio e longo prazos, as curvas dos índices tendem a convergir.

Não por acaso, bancos e corretoras projetam que o IPCA continuará pressionado no primeiro semestre deste ano, sobretudo em razão dos serviços. No mais recente Boletim Focus, a mediana das projeções para a inflação em 2025 foi de 4,99%, na 12.ª semana consecutiva de alta, e há quem estime que o IPCA encerrará o ano em 6%.

Nesse cenário, para o Banco Central (BC), ter de escrever uma carta ao governo para explicar por que não conseguiu cumprir a meta no ano passado é a parte fácil do trabalho, mesmo porque não afetará a credibilidade da instituição. O desafio da autoridade monetária será conduzir o índice rumo à meta neste ano. Todos já sabem que a taxa básica de juros aumentará para 14,25% ao ano em março, mas como esse patamar, ainda que elevadíssimo, não tem sido suficiente para domar as expectativas, não se sabe até onde eles irão para o BC cumprir sua missão.

Até agora, o governo Lula da Silva não colaborou e manteve uma política fiscal expansionista. Seria ingenuidade acreditar que algo mudará até 2026, haja vista o esvaziado pacote de corte de gastos anunciado e aprovado no fim do ano passado. Com o dólar acima de R$ 6,00, a tarefa do Banco Central será ainda mais difícil, com a agravante de que, pelo sistema de meta contínua, em vigor desde o início deste ano, terá de elaborar uma nova carta ao governo toda vez que a inflação acumulada em 12 meses ficar acima de 4,5% por 6 meses consecutivos. Melhor começar a pensar no texto da primeira delas, a ser enviada em julho.

A opacidade não pode ser a regra

O Estado de S. Paulo

CGU mostra que maioria das ONGs que recebem emendas não dá transparência ao uso dos recursos, motivo suficiente para justificar suspensão de repasses pelo ministro Dino

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão do repasse de recursos de emendas parlamentares a 13 organizações não governamentais (ONGs) que não deram transparência sobre o destino das verbas. A decisão do ministro se baseou em um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) que analisou 26 entidades do terceiro setor beneficiadas por essas indicações ao longo de dezembro. Desse total, metade divulgou os dados de maneira inadequada, nove apresentaram informações incompletas e somente quatro cumpriram integralmente os requisitos.

Se o resultado da auditoria, por si só, já causa espanto, os detalhes são estarrecedores. De um total de 676 ONGs que devem receber dinheiro público a partir de indicações de emendas parlamentares do mês passado, a CGU selecionou somente as 26 entidades que embolsariam mais recursos. As 13 que tiveram os repasses suspensos receberam R$ 142 milhões em emendas entre os dias 2 e 21 de dezembro. Quem apresentou informações incompletas recebeu prazo de dez dias para complementá-las, sob pena de também ter as próximas transferências bloqueadas.

As ONGs inspecionadas pela CGU não possuem restrições que impeçam o recebimento de recursos públicos, e é possível que não se apure nada que desabone sua atuação. Independentemente disso, não há como justificar a ausência de transparência.

É obrigação de cada uma delas prestar contas e divulgar na internet, de forma acessível, clara, detalhada e completa, o recebimento e a execução das verbas. A publicidade é um dos princípios constitucionais da administração pública. Somente com esses dados é possível acompanhar as políticas públicas, avaliar seus resultados e, eventualmente, aumentar a verba enviada ou direcioná-la para ações mais efetivas.

Em se tratando de emendas parlamentares, no entanto, a opacidade parece ser a regra em ao menos uma das etapas da cadeia – quando não em todas elas. Com o orçamento secreto, revelado pelo Estadão e declarado inconstitucional pelo STF no fim de 2022, deputados e senadores se esforçavam para escamotear a autoria das indicações, lógica que se repetiu com as emendas de comissão.

Já por meio das emendas Pix, a autoria da indicação e o destino da verba até eram identificados. No entanto, uma vez que o recurso chegava ao caixa dos municípios e Estados, prefeitos e governadores podiam gastá-lo livremente, sem a necessidade de definição prévia do programa, projeto ou atividade que seriam financiados.

Talvez não haja exemplo melhor a ilustrar a dimensão desse problema do que a queda da Ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira, entre Estreito (MA) e Aguiarnópolis (TO), no fim de dezembro. Embora o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) tenha apontado a existência de danos estruturais e a necessidade de reparos já em 2020, deputados e senadores da região optaram por alocar suas emendas em várias outras finalidades nos últimos anos.

Parte dos R$ 5,3 milhões enviados por meio de emendas Pix a um dos municípios, por exemplo, bancou ao menos 11 shows de artistas sertanejos desde 2023. Questionados pelo Estadão, deputados e senadores do Maranhão e de Tocantins alegaram desconhecer o mau estado de conservação da ponte e culparam o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes por sua ignorância. Negaram, também, ter enviado verba para custear os eventos festivos. Em outras palavras, o dinheiro caiu do céu, o acidente foi uma fatalidade e a responsabilidade pela tragédia – já são 14 mortes e 3 pessoas seguem desaparecidas – não é de ninguém.

O caso apenas corrobora a decisão do ministro Flávio Dino de conferir caráter permanente à fiscalização da CGU sobre o uso de emendas parlamentares. A falta de transparência na aplicação dos recursos, por si só, é motivo mais que suficiente para suspender novos repasses e pode ao menos estancar uma farra que, dividida em milhares de ações em todo o País, chegou a R$ 49,2 bilhões no ano passado. Diante de tantos indícios de mau uso do dinheiro público, a dúvida é se a CGU terá capacidade e pessoal suficientes para dar conta da tarefa.

Fim da linha

O Estado de S. Paulo

Nunes acerta ao agir para rescindir contratos de empresas de ônibus suspeitas de elo com PCC

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, assinou no fim de 2024 um despacho em que autorizou a abertura de um processo para rescindir os contratos com as empresas de ônibus UPBus e Transwolff. Segundo investigações do Ministério Público (MP), as duas operadoras do transporte coletivo da capital têm ligações com o Primeiro Comando da Capital (PCC), um perigoso sinal de contaminação da máquina pública pelo crime.

O processo será conduzido pela Secretaria Municipal de Transportes. A UPBus e a Transwolff terão até 15 dias para apresentar suas defesas, o que, no Estado Democrático de Direito, é uma garantia, embora esses valores pouco importem para o mundo do crime.

De acordo com Nunes, a Procuradoria-Geral do Município (PGM) trabalha com cautela para que não se cerceie o direito de defesa e do contraditório, “visando a instruir bem o processo”. Segundo o prefeito, “dependendo (dos argumentos) da defesa, se decreta a caducidade”, ou não. A decisão final será de Nunes.

Sem dúvida, todo mundo é inocente até que se prove o contrário, mas sobram indícios de que há algo de muito errado nessas duas companhias. Há um bom tempo, a UPBus e a Transwolff estão na mira de investigadores sob a suspeita de operar uma rede de laranjas do PCC e CNPJs fantasmas.

O caso veio a público em 2022, com prisões e apreensões de bens. Mesmo assim, as companhias receberam em fevereiro de 2024, conforme revelado pelo Estadão, R$ 827 milhões em repasses da Secretaria Municipal de Transportes e assinaram oito novos contratos para operar o sistema.

Com o decurso do tempo, a situação só se agravou. Em abril do ano passado, a Operação Fim da Linha foi deflagrada e revelou fortes indícios da presença do PCC nas duas empresas. Hoje, o presidente da UPBus, Ubiratan Antônio da Cunha, está preso.

As suspeitas de contágio do Estado pelo crime organizado se avolumam. Nada menos do que sete empresas de ônibus foram ou estão sob investigação pela polícia ou pelo MP por suposto elo com o crime organizado. Juntas elas transportam 27,5% dos passageiros de ônibus da capital e receberam R$ 2 bilhões da Prefeitura em 2023. É intolerável que dinheiro público possa alimentar o crime organizado.

Somem-se a esses negócios obscuros as inúmeras suspeitas recentes de tentativas do PCC de influenciar o processo eleitoral, numa evidente ameaça à lisura do resultado das urnas e um risco grave à democracia. E tudo com o objetivo de lavar dinheiro do tráfico por meio de contratos públicos e também influenciar a política.

Por tudo isso, toda e qualquer suspeita de envolvimento desse bando no poder público requer resposta enérgica. E a decisão do prefeito de instaurar um processo para analisar a pertinência dos contratos da UPBus e da Transwolff na área de transporte vai ao encontro dessa urgência. Diante de tanta nebulosidade sobre a idoneidade dessas empresas, é sempre conveniente lembrar que entre os princípios constitucionais da administração pública está a moralidade. E a moral, por sua vez, não pertence ao vocabulário do crime.

Crise com Venezuela deve se agravar

Correio Braziliense

Não faltam fatos que corroboram a fraude e o caráter ditatorial do governo Maduro. Condição pode tensionar a atual estratégia brasileira de mais relação técnica e menos engajamento político

A posse de Nicolás Maduro para mais um mandato presidencial escancara o caráter ditatorial do regime bolivariano da Venezuela. Sua posse ocorreu ontem, na Assembleia Nacional em Caracas, sob a presidência do deputado chavista Jorge Rodríguez, após um processo eleitoral sem transparência, autoritário e violento, marcado pela fraude mais grosseira: sumiram com as atas originais das seções eleitorais. Maduro não dispõe de provas de que venceu o pleito. Pelo contrário, quem tem essas provas é o candidato de oposição, Edmundo González Urrutia.

A posição conseguiu reunir 80% das atas das seções eleitorais, nas quais Urrutia obteve ampla maioria de votos. Não por acaso, a posse de Maduro teve baixa adesão de chefes de Estado — entre os quais, Daniel Ortega, que também se tornou um ditador na Nicarágua. Cada vez mais distante de Maduro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem foi convidado para a posse, mas foi representado pela embaixadora brasileira no país vizinho, Gilvânia Maria de Oliveira.

O contencioso entre Lula e Maduro agravou-se após o veto brasileiro à entrada da Venezuela no Brics, grupo de países emergentes liderado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que hoje reúne também Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Em outubro, no encontro de Kazan, na Rússia, tornaram-se parceiros do bloco outras 13 nações. A Venezuela ficou de fora. 

Maduro ainda não se conforma com isso. Ontem, ao tomar posse, disse que "a Venezuela já é do Brics desde que Bolívar triunfou em Junín", referência à batalha vencida pelo herói da independência da América espanhola. Mais tarde, fechou as fronteiras do país com o Brasil. 

Lula não reconhece a vitória de Maduro até hoje, porque isso foi condicionado à apresentação das atas da eleição. Por razões comerciais, humanitárias e diplomáticas,  não pretende romper relações diplomáticas com os vizinhos, ainda que sob fortes críticas. A tradição da política externa brasileira é de não interferência em assuntos internos de outros países. Entretanto, o reconhecimento pelo PT da eleição de Maduro e o apoio oficial ao regime bolivariano criam um enorme constrangimento para Lula, já que colocam em dúvida a centralidade do seu compromisso com a democracia.

Não faltam fatos que corroboram a fraude e o caráter ditatorial do governo Maduro. No início de 2024, as autoridades eleitorais barraram a candidatura de María Corina Machado, principal líder da oposição que, num gesto de grande coragem, deixou a clandestinidade depois de cinco meses e foi às ruas, na última quinta, para participar de uma manifestação contra Maduro. Ela relata que, ao deixar o protesto, foi sequestrada por elementos encapuzados, agredida e, depois, libertada.

Ontem, Corina divulgou um vídeo relatando a violência que sofreu, contestada pelo governo, e convocando a oposição a não esmorecer. Disse ainda que Edmundo González, exilado desde setembro, voltará à Venezuela para tomar posse como presidente constitucional "quando as condições forem adequadas". Ainda segundo a opositora, o fato de ela ter sido sequestrada e, depois, libertada revela profundas divisões no governo Maduro. Por tudo isso, a crise venezuelana deve se agravar, podendo tensionar a atual estratégia brasileira de mais relação técnica e menos engajamento político.

 

 

Nenhum comentário: