O Estado de S. Paulo
Ao elevar o cristianismo a representação política oficial, o projeto deixa em aberto uma pergunta inevitável: e as demais matrizes religiosas?
Com 398 votos, a Câmara dos Deputados aprovou
em outubro a urgência para a criação da bancada cristã. A justificativa repousa
sobre o argumento de que o Brasil é “uma nação de maioria cristã”, citando o
último censo.
A iniciativa, requerida pelos presidentes das
frentes católica e evangélica, se aprovada, dará à bancada assento no colégio
de líderes e tempo de fala nas sessões. Uma voz oficial no coração do Estado.
Será, assim, a formalização de um fenômeno que estudiosos vêm mapeando há anos:
o cristianismo cultural.
Trata-se de conceito acadêmico. Autores como Tobias Cremer, Anja Hennig e Oliver Hidalgo mostram que o cristianismo cultural funciona, em contextos europeus e nos EUA, como uma identidade majoritária acionada em disputas políticas contemporâneas, notadamente em contraste com populações muçulmanas, frequentemente apresentadas como uma ameaça ao chamado Ocidente.
De acordo com esses estudos, referências ao
cristianismo deixam de se restringir à esfera religiosa e passam a operar como
baliza de posições conservadoras, definem fronteiras simbólicas e sustentam
ideias de ordem moral consideradas fundamentais para a nação.
No Brasil, Ronaldo de Almeida, Paula Bortolin
e João Moura analisam fenômenos próximos ao descreverem como diferentes
segmentos cristãos conservadores se articulam em torno de uma concepção de
ordem moral e atuam de forma coordenada na esfera pública, constituindo um
campo político-religioso que reivindica voz majoritária na definição dos rumos
do País, com tendência antipluralista.
É aqui que a “maioria cristã” invocada na
justificativa do projeto passa, de dado demográfico, a argumento político,
convertendo-se numa “maioria moral” à moda da direita cristã norte-americana
dos anos 1970, que mobilizou a fé para fins de poder temporal, culminando com a
eleição de Ronald Reagan.
Em contraposição à imensa heterogeneidade do
mundo concreto dos fiéis católicos e evangélicos, o que a bancada cristã
pretende é promover uma voz unificada e de direita. O que está em jogo, como
dito literalmente nos debates sobre a proposta, é a “força” do “movimento
conservador”.
Já existem duas bancadas temáticas oficiais: a negra e a feminina. Assim como a cristã, todas se organizam em torno de identidades coletivas reconhecidas como politicamente relevantes, transcendendo partidos. São um reconhecimento de que marcadores sociais como gênero, raça e religião estruturam experiências e produzem interesses compartilhados. Todas articulam um “quem somos” e um “o que queremos” enquanto grupo. O objetivo formal de todas essas bancadas é ampliar sua capacidade de influência e de pautar a agenda legislativa.
Mas há diferenças fundamentais. As bancadas
negra e feminina são respostas a uma história de exclusão e violência bastante
marcadas, afirmando posições de sujeito vulnerabilizadas, enquanto a cristã
seria a reafirmação de uma maioria hegemônica, pela preservação de um status
desafiado tanto modernidade secular quanto pelo pluralismo.
As primeiras têm como oponentes estruturas
impessoais: o machismo, o racismo e a desigualdade. A segunda tem como
antagonistas grupos específicos: o “marxismo cultural”, o comunismo, o
globalismo, os ativistas de gênero, as diversas ameaças à “civilização
judaicocristã”, definidas pelo norteamericano Michael Minnicino em seu famoso
artigo The New Dark Age.
Há aqui um jogo conceitual interessante:
cristianismo cultural, chave analítica das ciências sociais, descreve os
contornos de uma identidade conservadora; já “marxismo cultural”, rótulo
central no discurso da direita desenvolvido desde os anos 90, cumpre a função
oposta: a de nomear, de forma ampla e frequentemente conspiratória, o inimigo
percebido dessa identidade, associado ao multiculturalismo, ao liberalismo e ao
politicamente correto.
Outro ponto importante é que nenhuma dessas
identidades é autodeclarada. Ninguém se define como “cristão cultural” ou
“marxista cultural”. São, portanto, categorias produzidas de fora: a primeira,
pela academia; a segunda pelo discurso político de direita. Um funciona como
espelho invertido do outro.
Finalmente, existe a questão da laicidade. Ao
elevar o cristianismo a representação política oficial, o projeto deixa em
aberto uma pergunta inevitável: e as demais matrizes religiosas?
No debate, os opositores da iniciativa
argumentaram no sentido da diversidade de crenças. Já a defesa da proposta
sustentou que a bancada cristã garantiria assento para pautas de vida e família
no colégio de líderes.
Na deliberação, apenas a federação Psol/Rede orientou voto contrário. Bancadas de oposição e a federação PT/PCdoB e PV orientaram “sim”. O cenário revela uma rara convergência. A religião influencia a política e isso é um dado histórico. A questão é definir o alcance institucional que essa articulação pode adquirir sem prejudicar a pluralidade que caracteriza o Brasil.

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