terça-feira, 2 de dezembro de 2025

‘Gastança’ e circulação da renda, por Luiz Gonzaga Belluzzo

Valor Econômico

A análise de Keynes deve ser aplicada às decisões de gasto do governo: as autoridades podem decidir gastar mais em uma situação de desalento do dispêndio privado

Ao deambular pelos caminhos do debate econômico contemporâneo, a mídia frequentemente assusta o leitor ou espectador. Nos templos da austeridade, a fé midiática reza a ladainha da “gastança” e do risco fiscal. Os editoriais e opiniões — dia sim, outro também — reafirmam suas crenças ao exorcizar o Risco Fiscal, Demônio de Plantão. As manchetes que encimam as peças opinativas repetem à saciedade: “O Problema é o Gasto”.

As avaliações do momento econômico invertem as relações entre gasto e renda. Nota-se a prevalência de concepções que parecem acreditar na anterioridade da arrecadação de impostos em relação aos gastos do Estado. É a falácia que proclama “Primeiro arrecada e depois gasta”. Em sua dinâmica, as economias de mercado capitalistas insistem em desacreditar essa falácia.

Nos tempos da crise financeira de 2008, Paul Krugman discorreu a respeito das relações entre gasto, renda e dívida. Peço licença ao leitor para relembrar as afirmações do economista americano: “Nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gastos simultaneamente para reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai”.

Outro exemplo de inconsistência conceitual está na separação entre oferta e demanda, apresentada nos manuais de macroeconomia. A separação — o “lado da demanda” e o “lado da oferta” — não faz sentido para o tratamento da “economia como um todo”, tal como a concebia Keynes, o John Maynard.

Em uma carta endereçada aos assessores de Roosevelt, Keynes desfiou argumentos a respeito das relações oferta e demanda. “Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-nos de gastar.” Então, como eu disse, a resposta é óbvia.

Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.

No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.

Se você responder comprando algo que eu posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros.

Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir”.

No volume II do Capital, Marx estabelece a distinção entre as condições de produção de mais-valor — que dependem da capacidade produtiva da sociedade — e as condições de realização do valor que decorrem das antecipações dos capitalistas, ou seja, dependem das decisões da classe capitalista de renovar o circuito da renda’.

Seria audacioso imaginar analistas do mainstream dispostos a aceitar as concepções keynesianas-marxistas de demanda efetiva, fonte da criação da renda. Keynes procurou explicitar a conjugação entre os elementos objetivos e subjetivos que condiciona a decisão de acumular riqueza em uma economia monetária.

A construção do princípio da demanda efetiva supõe um tratamento não convencional das relações entre oferta e demanda: o preço de oferta agregada é definido como a expectativa de receitas — deduzidos os custos dos fatores — que os empresários esperam receber, caso ofereçam (nos dois departamentos: bens de produção e bens de consumo) um determinado volume de emprego e um dado nível de ocupação da capacidade instalada.

Corte de gasto público diante da redução do gasto privado levará ao aumento dos déficits e das dívidas privadas

A demanda agregada é imaginada pelos empresários a partir das expectativas de rendimentos — deduzido o custo de uso — que esperam receber dos gastos com consumo e investimento por parte da comunidade, isto é, dos consumidores e dos próprios empresários.

A demanda efetiva é um conceito baseado no “estado de expectativas” dos decisores de gasto. A intersecção entre as funções de oferta e de demanda determina um ponto em que se efetivam as decisões dos empresários-capitalistas, a partir de um certo estado de expectativas. As decisões dos Senhores do Dinheiro se deslocam ao longo da curva de “demanda efetiva” diante das mudanças nas avaliações empresariais. Keynes afirma a interdependência entre oferta e demanda na economia capitalista submetida ao controle das decisões de uma categoria social. A análise de Keynes deve ser aplicada às decisões de gasto do governo: as autoridades podem decidir gastar mais em uma situação de desalento do dispêndio privado. Não se trata de gastar a rodo, mas, sim de coordenar as expectativas dos empresários desalentados. Déficits ou superávits vão depender da resposta do setor privado ao estímulo do gasto público.

Se o governo corta o gasto em uma conjuntura de encolhimento do gasto privado — empresas e famílias — a queda da renda “agregada” vai inexoravelmente levar a um aumento dos déficits e das dívidas públicas e privadas, com exacerbação do risco de crédito e efeitos indesejáveis sobre os balanços dos bancos financiadores. Essas são as lições exauridas de todas as crises e em todas as crises.

 

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