• Ministro do STF diz que a Lava Jato pode atingir outros órgãos do governo e que não adianta discutir financiamento de campanha antes da revisão do sistema eleitoral
Eumano Silva - IstoÉ
Os brasileiros devem se preparar para viver, em 2015, um ano de grandes desafios nos três poderes da República. Esse é o diagnóstico do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A mais alta corte do Judiciário deverá julgar, por exemplo, várias questões relacionadas ao salário do funcionalismo público, assunto que tem reflexos no Executivo e no Legislativo. O caso que vai mobilizar as principais autoridades do País, no entanto, será o escândalo da Petrobras.
As decisões do STF sobre as descobertas da Operação Lava Jato, da Polícia Federal, podem atingir caciques políticos com mandato eletivo, executivos e donos de grandes empresas – em especial empreiteiras –, integrantes do governo atual e de gestões passadas. Pelo que viu, até agora, Mendes se diz "chocado e perplexo" com a extensão da rede criminosa que sangra os cofres da maior estatal do País. Na opinião do ministro, os tentáculos da poderosa organização ilegal podem chegar a outros órgãos do governo. "É difícil imaginar que haja negócios regulares nesse ambiente", afirma Mendes.
ISTOÉ - O STF está preparado para essa situação?
GILMAR MENDES - Penso que sim. O tribunal tem crescido em momentos difíceis, isso é próprio de instituições com certa tradição. Muitas vezes o tribunal é maior do que a composição individual, que às vezes deixa a desejar. Mas a gente não pode atribuir essa missão exclusivamente ao tribunal. É fundamental que o estamento político realize sua missão. Por exemplo, a reforma política não pode ser obra de tribunal.
ISTOÉ - O que mais chama sua atenção nesse processo deflagrado pela Operação Lava Jato?
GILMAR MENDES - Estou chocado e perplexo com as revelações em torno da Petrobras. Um dia desses um jornal publicou que, entre dirigentes da Petrobras, havia até um tipo de troca de créditos de propina. É difícil, diante da narrativa a que tivemos acesso até aqui, imaginar que haja negócios regulares nesse ambiente. Chega ao cidadão, mesmo aos mais simples, a ideia de que essa é a rotina. Isso choca. É a normalização do mal.
ISTOÉ - Por que isso acontece?
GILMAR MENDES - Até pouco tempo atrás costumava-se dizer que a corrupção estava associada ao financiamento eleitoral. Mas estamos a ver que os recursos não fluem necessariamente para os caixas dos partidos. Há patrimonialização, contas no exterior em volumes elevadíssimos, até uma devolução de US$ 100 milhões. Fala-se também, nas delações, de pessoas que já assumiram compromisso de devolver R$ 500 milhões. No mensalão, nós orçávamos os valores dos desvios em torno de R$ 170 milhões e achávamos que aquilo era significativo.
ISTOÉ - Qual é o grande ensinamento do processo do mensalão?
GILMAR MENDES - Do ponto de vista institucional, acho que mostrou que se encerrou um ciclo tendencial de impunidade. Virou um processo símbolo, por conta de todas as implicações, dos sujeitos envolvidos. Do ponto de vista processual, mostrou-se também que é quase impossível julgar um processo com 40 pessoas, aqui, no plenário do Supremo. Por isso, fragmentamos as competências do plenário, passamos para as turmas e estamos a exercitar essa segmentação de processos.
ISTOÉ - Apesar das condenações do mensalão, o escândalo da Petrobras demonstra que as práticas corruptas continuaram. Houve mesmo esse aspecto educativo?
GILMAR MENDES - A gente percebe que tem algum efeito, talvez, tendo em vista a delação premiada agora. As pessoas viram, por exemplo, que os operadores, como o publicitário Marcos Valério ou Kátia Rabello, do Banco Rural, tiveram penas elevadas, se levarmos em conta as que foram aplicadas às pessoas do segmento político. Tenho a impressão de que isso estimulou esse ânimo de cooperação que nós estamos vendo e que está resultando positivo. Mas concordo que a práxis indica uma certa normalização desse tipo de conduta. Se imaginamos que essa rede de propinas se instalou há muitos anos na Petrobras, por que não estará também em outras estatais, nos fundos de pensão e em outros entes sob a influência desse Estado ocupado partidariamente?
ISTOÉ - A Petrobras sobrevive a essa crise?
GILMAR MENDES - Esse é o grande desafio. Nós que tínhamos tanto orgulho da Petrobras, de suas façanhas históricas, estamos todos constrangidos e envergonhados. Essas investigações nos Estados Unidos são constrangedoras. Empresários que também têm raízes no exterior dizem que essas investigações se refletem também em outras empresas brasileiras. É a credibilidade do País que está sendo afetada. Estamos sendo apresentados como culturalmente corruptos. Isso é extremamente grave, precisamos reagir. Vivemos uma escalada das degradações.
ISTOÉ - Por que o sr. pediu vista de um processo que acaba com as doações eleitorais das empresas privadas?
GILMAR MENDES - O discurso fácil é que a corrupção existe por conta do financiamento das empresas privadas. Parece que o petrolão está desmentindo isso. O Brasil chegou ao modelo do financiamento das empresas privadas depois do episódio do impeachment do presidente Fernando Collor. Foi a CPMI do Paulo César Farias e do Collor que recomendou a adoção do financiamento das empresas privadas, com um certo limite, para evitar o caixa 2. E agora se diz que o financiamento das empresas privadas rima com corrupção. Parece que se imaginava, com isso, mudar o sistema eleitoral. O partido que desenhou essa proposta (o PT) queria o financiamento público e o voto em lista. A minha objeção é que nós temos de discutir o sistema eleitoral para saber qual é o modelo de financiamento. E não discutir o modelo de financiamento para definir o sistema eleitoral.
ISTOÉ - Nas contas eleitorais da presidente Dilma, o sr. chegou a suspeitar de doações feitas no caixa 1 com dinheiro ilegal...
GILMAR MENDES - Não se sabe, necessariamente. Chamo a atenção para o fato de que não adianta simplesmente vedar a participação das empresas privadas se nós não definirmos qual vai ser o modelo eleitoral. E, claro, temos de definir o custo de campanha. O publicitário Duda Mendonça disse que é preciso acabar com as campanhas artificiais na televisão. Vimos agora que, dos gastos da campanha presidencial vitoriosa, mais de R$ 70 milhões foram para o (marqueteiro) João Santana.
ISTOÉ - O que os técnicos do TSE apontaram de mais importante no trabalho sobre as contas da presidente Dilma?
GILMAR MENDES - Os técnicos apontaram alguns desvios, mas um percentual alto estava no fato de não ter havido a prestação de contas no tempo certo, o que é um problema operacional sério para os partidos e, por isso, reconhecemos. Algumas incongruências nós apontamos. Por exemplo, o segundo maior gasto, de R$ 24 milhões, foi para aquela empresa de São Bernardo dirigida por um motorista. Surgiram dúvidas se determinada empresa fez doação porque é grande beneficiária de financiamento do BNDES. Há nisso uma condicionalidade, ou não? A mesma coisa vale para empresas prestadoras de serviço para o governo. Tudo isso não é suscetível de ser examinado no âmbito do TSE. Por isso, mandamos essas dúvidas para os órgãos competentes como Ministério da Fazenda, Coaf e TCU para que possam também fazer a devida avaliação.
ISTOÉ - Além dos julgamentos de pessoas com direito a foro especial, que outros casos vão mobilizar o STF em 2015?
GILMAR MENDES - Teremos a retomada das atividades nas causas de repercussão geral – algumas já foram colocadas este ano. Por exemplo, o direito a uma possível revisão geral anual dos salários dos funcionários públicos. Isso começou a ser julgado e está com um pedido de vista. Temos a desaposentação, também já colocada, várias questões de índole tributária e os planos econômicos, cuja votação ficou suspensa. Há também refregas corporativas. Nós temos muitas questões salariais tensionando o ambiente. Os próprios juízes estão mais reivindicativos. Nós temos essa questão do auxílio-moradia e certamente outras categorias vão tentar também obter algum tipo de vantagem. Vislumbro um ano muito tenso nesse ambiente corporativo, especialmente no STF.
ISTOÉ - Até que ponto essas ações que aumentam os gastos públicos ameaçam as contas do governo?
GILMAR MENDES - Estou muito preocupado com esse quadro. Tenho a responsabilidade fiscal como um pressuposto de toda a ação estatal. Quando começamos a conceder vantagens sem base legal, em geral infringimos também a lei orçamentária e corremos o risco de, daqui a pouco, termos dado um benefício sem termos condições de assegurar a sua continuidade. Na magistratura federal nós já temos o auxílio-alimentação e, recentemente, o auxílio-moradia, baseado em uma liminar do ministro Luiz Fux, estendido pelo CNJ. Tem um valor único, de R$ 4.500, independentemente do local onde a pessoa vive, e de o sujeito ter ou não imóvel. Isso convida outras categorias a reproduzir a mesma prática, como já acontece no Ministério Público, que é paradigma dessa ação. A defensoria pública está fazendo a mesma coisa. Daqui a pouco, vêm auditores, delegados, consultores legislativos e assim por diante.
ISTOÉ - A Comissão da Verdade recomenda uma reinterpretação da Lei da Anistia. O sr. acredita que possa haver uma mudança nessa questão?
GILMAR MENDES - Vamos aguardar a provocação. Existe um dado que, às vezes, escapa. A ideia da anistia ampla, geral e irrestrita veio também no próprio processo constituinte, no artigo 4° da emenda que convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Está na base da nossa ordem constitucional. A emenda incorporou aquela regra básica. A mim me parece que esse debate foi levado a cabo com toda a competência em todos os sentidos pelo tribunal.
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