terça-feira, 8 de setembro de 2015

Fernando Henrique Cardoso - Jimmy Carter, um grande líder moral de nosso tempo

• As muitas qualidades do ex-presidente nos inspiram a ser melhores líderes, e nos movem agora em solidariedade a ele

- O Globo

Em 1977, eu era membro do Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton quando um belo dia o telefone tocou. Era Robert Pastor, conselheiro especial da Casa Branca, me convidando para ir a Washington. Pastor era um amigo, e cientista político, que havia me ajudado a vencer entraves para obter visto de entrada nos Estados Unidos — uma vez que, nessa época, eu era suspeito de “atividades antiamericanas”. Como as coisas mudam.

De Princeton a Washington não é longe, e eu fui de trem. Pastor me recebeu com afeto e, para minha surpresa, me disse que o presidente Jimmy Carter planejava visitar o Brasil. Sua mulher, Rosalynn, já havia feito uma viagem ao país.

Isso é interessante, pensei. Mas o que tem a ver comigo?

Estávamos no auge da ditadura militar no Brasil, que desde 1964 havia sido apoiada por sucessivos governos americanos. Vozes pró-democracia, como a minha, foram marginalizadas ou empurradas para o exílio. Mas agora, o recém-empossado Jimmy Carter, conhecido por suas ideias progressistas e seu compromisso com os direitos humanos, queria entrar em contato, enquanto estivesse no Brasil, com figuras que se opunham ao regime.

Pastor e eu discutimos quem poderia dar ao presidente Carter uma visão geral do que estava realmente se passando no país. E, de fato, a visita de Carter ao Brasil em março de 1978 seria altamente lembrada por seu encontro com o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, um dos nossos mais firmes defensores dos direitos humanos. Carter, que também se reuniu com o presidente Ernesto Geisel, foi criticado por alguns por não ter sido explícito em sua condenação aos abusos do regime. Como se fosse possível a um chefe de Estado estrangeiro fazer tais críticas em uma visita oficial.

De qualquer modo, o gesto de Carter foi suficientemente corajoso, a ponto de reverberar no Brasil por anos a fio. O regime militar já não possuía mais apoio incondicional de Washington — um fato que não passou despercebido pelos generais nem pela oposição. Graças ao árduo trabalho de ativistas comprometidos e pressão do povo brasileiro, os militares, enfim, deixaram o poder em 1985.

A viagem, porém, teve seu custo para Carter. Durante a campanha presidencial americana de 1980, aliados de Ronald Reagan acusaram Carter de ter comprometido as relações de Washington com Brasil e outros governos autoritários em nome da defesa dos direitos humanos. Carter se manteve fiel a seus princípios, como sempre. Ele perdeu seu pleito por reeleição. No entanto, pode-se dizer que a perda dos Estados Unidos foi ganho nosso. Os bons trabalhos realizados por Carter na região — e no mundo — estavam apenas começando.
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Jimmy Carter voltou ao Brasil em 1985, no ano em que o regime militar acabou, e foi carinhosamente recebido pelos dois candidatos presidenciais civis, que agradeceram por seu papel na transição. Ele recebeu boas-vindas similares no Peru e na Argentina, que também eram novas democracias. Ficou claro para todo mundo que Carter, simplesmente, estivera à frente de seu tempo.

Pelo que me lembro, não me encontrei pessoalmente com Carter até uma década mais tarde, quando eu era presidente. Lembro-me que ele me trouxe uma cópia de seu livro de memória, “Keeping Faith” (no Brasil, publicado sob o título “Jimmy Carter — Memórias espirituais”). Gostei dele de imediato. Espero que o sentimento tenha sido recíproco. Após deixar a Presidência em 2003, fui convidado por Nelson Mandela a fazer parte do “The Elders”, um grupo de 11 ex-líderes que incluía Carter, e ali nossa amizade começou a florescer.

Vale a pena observar que, quando Carter recentemente adoeceu no exterior, levando à descoberta de um câncer, ele estava na Guiana, monitorando uma eleição. Não foi uma coincidência. Poucos presidentes americanos, se é que houve algum, mostraram tal engajamento dedicado à América Latina. Em qualquer lugar onde a democracia esteja em risco, lá está Carter, seja na Venezuela (onde o Centro Carter fechou suas portas recentemente devido à falta de liberdade) ou no Zimbábue, onde ele pressionou por eleições livres sem mesmo conseguir entrar no país.

De fato, constantemente tenho visto como Carter abraçou de forma abnegada causas nobres, aparentemente redefinindo as leis da idade e de como ex-presidentes devem agir. Observei de longe suas ações no Sul do Sudão, Coreia do Norte e Myanmar. Com os “Elders”, fomos juntos a Israel e Cisjordânia. Visitamos as Cordilheiras de Atlas, no Marrocos, e participamos da reunião ambiental “Rio + 20” no meu país. Eu o vi quando os “Elders” se reuniram em Atlanta no ano passado para comemorar seu aniversário de 90 anos, e mais recentemente em Londres.

Durante todos esses anos, vi um Carter corajoso, bom, razoável, dono de uma extraordinária energia física e, sobretudo, um comprometimento com valores fundamentais: liberdade, democracia, direitos humanos e a necessidade de ouvir aqueles que não possuem uma forte voz. Ao mesmo tempo, ele é tremendamente humano — uma figura profundamente religiosa, que escreve poesia para expressar o seu amor, não apenas por Rosalynn e sua família, mas ao povo, seu próximo.

Estas qualidades inspiraram muitos de nós a ser melhores líderes, e pessoas melhores. E elas nos mobilizam em solidariedade a Jimmy Carter, meu amigo, amigo da América Latina, e um grande líder moral de nosso tempo.
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Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e membro do Conselho Editorial do Americas Quartely. Foi presidente do Brasil entre 1995 e 2002. Publicado originalmente em “Americas Quartely” (www.americasquartely.org)

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