• A anarquia fiscal acabou restaurada sob gerência de uma presidente com diploma de economista e dona de certeza granítica sobre a perfeição e a nobreza de seu governo
- O Globo
Se errar é uma imperfeição humana, Dilma Rousseff duvida que possua esse defeito. Generosa, até se sujeita à admissão de remota possibilidade, mas apenas por uma necessidade emergencial de marketing: “Se cometemos erros” — disse ontem —, “e isso é possível, vamos superá-los e seguir em frente.”
Dilma se apresenta satisfeita com a vida em mundo fictício, no qual a convicção da realidade nunca se altera. Nele, “crise” é palavra proibida. Há “dificuldades” e “desafios”.
O que aconteceu, então? Por que o Estado quebrou? Tal percepção da vida real não é correta, sugeriu a presidente em discurso, remetendo ao seu nobre esforço: “O governo entendeu que deveria gastar o que fosse preciso para garantir o emprego e a renda do trabalhador, a continuidade dos investimentos e dos programas sociais.”
O convencimento da presidente sobre seus acertos confronta a percepção coletiva sobre a inflação, a recessão, o rombo nas contas federais e a quebra dos estados e prefeituras, cujo endividamento foi anabolizado por ordem direta da Presidência da República.
Ela tenta manter uma aparência de racionalidade, embora tenha sido quem mandou o Tesouro garantir a triplicação das dívidas estaduais. Entre 2011 e 2014, saltaram de 0,2% para 0,6% do Produto Interno Bruto.
Dilma sabia: pelo menos 50 desses financiamentos destinavam- se a estados já classificados pelo Ministério da Fazenda como impedidos de receber novos créditos. Um deles era o Rio Grande do Sul, estrela da bandeira petista, que hoje parcela o pagamento do funcionalismo a partir da faixa de R$ 600 mensais. É prelúdio de algo previsto para acontecer em outros estados.
Não há vestígio de um terço desse novo endividamento, contratado no último triênio. Foram torrados R$ 30 bilhões, o equivalente ao déficit previsto no Orçamento da União para 2016.
O dinheiro desapareceu na folha de pagamentos, contou o ministro Joaquim Levy a deputados, na semana passada. A despesa de pessoal dos governos estaduais cresceu 54% nos últimos três anos. Passou de R$ 185 bilhões, em 2011, para R$ 284 bilhões, no ano passado.
Dilma, é óbvio, não tem culpa se os governadores aumentaram dívidas numa velocidade dez vezes maior que o crescimento da receita líquida em termos reais — ou seja, descontada a inflação.
É certo, no entanto, que a presidente estimulou-os. Abriu a porteira da Fazenda e concedeu-lhes garantias do Tesouro Nacional.
Para tapar buracos da má gestão, ela enunciou ontem nova tributação: “Alguns remédios são amargos, mas indispensáveis.” Significa que a conta será paga, principalmente, pelos mais pobres cujos bolsos foram devastados, na última década e meia, pelo aumento de 14 pontos percentuais na carga tributária.
Pobres já destinam, obrigatoriamente, 32% de sua renda mensal ao pagamento de tributos ao Estado, informa o Ipea, do Ministério do Planejamento. Devem perder ainda mais.
A anarquia fiscal parecia superada desde o final dos anos 90. Ironia da história: acabou restaurada sob gerência de uma presidente com diploma de economista e dona de certeza granítica sobre a perfeição e a nobreza de seu governo.
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