- O Globo
O país ontem mergulhou num mar de informação sobre uma realidade paralela construída pelos políticos e a Odebrecht. Eles faziam negócios, estabeleciam regras e parâmetros e decidiam os destinos do governo e do Brasil. Tudo o que foi revelado mostra a corrupção muito mais profunda do que já foi dito e imaginado. O negócio da corrupção era sofisticado e bem gerido, por assim dizer.
Nos áudios do depoimento ao juiz Sérgio Moro, e nos vídeos da delação premiada à Procuradoria-Geral da República, Marcelo Odebrecht, de forma franca, fria, cirúrgica, explica a engenharia do crime montada metodicamente dentro da empreiteira. No meio de explicações técnicas sobre o funcionamento da corrupção, Marcelo solta frases que ainda espantam.
Como quando contou que ao conversar com o então ministro Guido Mantega sobre a MP do Refis da Crise, que daria vantagens financeiras às empresas do grupo, Mantega escreveu num papel o número “50”. Com o inusitado gesto informava que essa era a expectativa que o governo tinha de receber da empresa para a campanha de 2010, em troca da MP.
Houve inclusive sucessão na administração da propina tanto no Ministério da Fazenda quanto na Presidência:
— Aí desse saldo, R$ 50 milhões, que chamo de pós-Itália, eu tinha combinado com o Palocci, ele conhecia esses R$ 50 milhões, mas tinha combinado que seria gerido por Mantega. Foi uma solicitação específica que Mantega fez a mim. Esses R$ 50 milhões, em tese, o Palocci sabia dele, mas só poderia mexer com anuência de Mantega. Aí tinha um saldo de uns R$ 40 milhões, do que eu tinha combinado com Palocci. Aí, o que eu combinei com Palocci foi que era uma relação minha com a presidência, digamos, PT, presidência do PT no Brasil. Eu dizia, vai mudar o governo e vai entrar a Dilma. Essa planilha passa, o saldo passa a ser gerido por ela, a pedido dela.
Marcelo historiou a evolução dentro da empresa. A propina era desorganizada e descentralizada e foi se sofisticando e progredindo. Nos anos 1980, era paga em cada obra e isso acabava “contaminando a contabilidade da empresa e levava a um risco fiscal nas empresas”. Por isso, começou a se organizar melhor o negócio. Com modernas técnicas de gestão, a empresa passou a ter maior controle sobre as propinas pagas. Pode ser estudado nas escolas de negócios.
Foi montado um centro de geração de propinas, e um centro de distribuição, e tudo isso foi internacionalizado.
— A equipe de geração passou a atuar predominantemente no exterior, porque havia ganhos nos paraísos fiscais. No Brasil, essas operações davam prejuízo —explicou Marcelo Odebrecht.
A equipe de distribuição foi criada nos anos 1990 e, além dos funcionários responsáveis pelo setor, os principais executivos das empresas do grupo também participavam do trabalho. Segundo Marcelo, em época de eleição havia muita demanda da equipe de distribuição no Brasil, mas, como a equipe de geração ficava no exterior, foi preciso centralizar, para evitar que “uma empresa tivesse vantagens sobre as outras” na distribuição de recursos ilícitos.
Quando o responsável pela distribuição da propina morreu, foi nomeado Hilberto Mascarenhas. Só que ele fez um pedido. Queria um cargo com um nome mais discreto que ajudasse a disfarçar a verdadeira natureza das suas atividades. Daí foi inventado o posto de “diretor de operações estruturadas”. No mundo dos negócios, a expressão existe e é usada para operações financeiras com garantias específicas. Mas ficou sendo esse o cargo para evitar o nome que expressaria melhor as funções desse diretor do setor de distribuição de propinas. Os pagamentos de recursos não contabilizados tinham uma forma secreta de serem contabilizados.
Tudo lembra uma realidade paralela, um mundo clandestino, organizado de forma objetiva mas invisível à maioria dos olhos. E foi assim que o Brasil viveu. Sim, a Lava-Jato é histórica. Durante muitos anos se falará do que estamos vivendo agora. Ontem se viu um nu frontal da corrupção, em cadeia nacional, com imagens de um poderoso empresário explicando objetivamente como foi organizado e era gerido o negócio da corrupção. Por mais assustador que seja este momento, é a melhor chance que o Brasil já teve.
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