- O Estado de S. Paulo
A do petismo e aliados está velha, ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia
Conexa às diatribes de Lula, parte da esquerda brasileira, em especial a que ainda lhe empresta apoio, parece viver como nefelibata, justificando e reagindo a qualquer denúncia, por menor que seja. Se antes defendia, sem pejo, “os seus”, qualificando-os indevidamente como “heróis do povo brasileiro”, hoje busca um álibi ao culpabilizar indiscriminadamente o Poder Judiciário pela crise que envolve a República. Mais grave ainda: decidiu afrontar a chamada “república de Curitiba”, acusando-a de destruir os “campeões nacionais” da era petista.
Cega como está, essa parcela da esquerda dificilmente encontrará os termos de reconciliação com a realidade. A cada passo perde credibilidade como ator político, o que é negativo sob todos os aspectos. Certamente um país com o grau de desigualdade e de atraso como o Brasil necessita de uma esquerda vigorosa e moderna que seja um componente essencial das relações de força no enfrentamento de questões que perenizaram entre nós um “mau Estado e um mau mercado”. Mas nos referíamos aqui a uma “outra” esquerda, democrática e republicana, de perfil majoritário, e não testemunhal, capaz de superar a deplorável identificação que o PT se encarregou de estabelecer entre esquerda e corrupção.
Uma esquerda da inventare, como dizem os italianos, portadora de um vivo propósito de rever seus conceitos, suas representações, sua prática e suas linguagens, superar anacronismos e passadismos, e assimilar definitivamente que o caminho, assim como o destino da sua política, se estabelece no interior e por meio das instituições democráticas. Dirigentes petistas, quando estavam no governo, falavam e agora, na oposição, continuam falando que fazem política dentro das instituições “deles”, o que configura um equívoco de fundo pelo qual se pode definir o petismo e seus aliados como uma esquerda velha e ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia brasileira.
No plano das ideias, há historicamente uma identificação insofismável entre esquerda e socialismo, embora se deva reconhecer que nem toda esquerda postulou o socialismo. Isso porque esquerda é um conceito situacional e dependente das relações de força que envolvem a direita e o centro. Essas três porções da geografia política assumiram na História um sem-número de configurações, redesenhando sua identidade.
O socialismo foi um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no decorrer dos séculos 19 e 20. Nasceu com o capitalismo industrial e teve suas origens nos estratos mais profundos da sociedade europeia. O socialismo combinou uma concepção de liberdade nascida do Iluminismo com as demandas por igualdade nascidas do mundo do trabalhador pobre do século 19. Dividiu-se entre o comunismo de matriz soviética e a social-democracia do Ocidente europeu. O primeiro feneceu e o segundo segue vivo, a despeito da crise atual.
As três últimas décadas do século 20 produziram mudanças na estrutura do mundo que fizeram ruir as bases de referência do socialismo. Como resultado dessas mudanças tecnológicas e comunicacionais, a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo a necessidade de mão de obra. A classe operária começou a minguar e perder os atributos de sujeito universal e emancipador que lhe atribuíam os teóricos do socialismo. Num cenário pós-fordista, diminui a autoorganização coletiva, a vida associativa, bem como as diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. No final do século 20 e início do século 21 a esquerda perdeu o seu referencial mais potente.
No final do século 20, a revolução também agonizou como o lugar simbólico e o eixo estratégico da esquerda. Já na década de 1930 se suspeitava que a contraposição entre revolucionários e reformistas não passava de um equívoco. Imaginar que o socialismo deveria superar o capitalismo por meio da intensificação de um processo de enfrentamento de classes foi um erro histórico que causou impotência e derrota. Setenta anos depois, esse entendimento se esgotou e hoje não é mais do que uma retórica inercial.
Ultrapassado o mito da revolução, uma esquerda integrada aos sistemas democráticos parece ser a única representação positiva que fica dessa trajetória secular. Apenas como parte desses sistemas, e em luta para renová-los, é que a esquerda se pode apresentar como uma força política transformadora fundada na extensão da igualdade de oportunidades, na valorização das responsabilidades coletivas e numa concepção solidária e fraterna da vida. Uma esquerda que, como enfatizou Walter Veltroni em discurso recente, possa abrir-se à contaminação, à curiosidade, ao espírito crítico e à disponibilidade de falar a língua do outro. Em suma, uma esquerda reformista que tenha uma concepção não imóvel da sua identidade e sustente seus valores na justiça social, na defesa do valor do trabalho, na renúncia às concepções totalitárias da História e da vida, na defesa dos mais débeis, bem como na refutação do mito do sucesso individual, passando a pensar o individual e o social de maneira integrada, e não antagônica.
Não se trata de relançar a ideia de utopia, uma noção mais condizente com o arsenal linguístico do pensamento revolucionário. Aliás, não é verdade que a social-democracia esteja em crise porque se afastou da utopia. Suas perdas eleitorais resultam da incapacidade de prover o que antes provinha. Agregar um adjetivo à noção de utopia não vai resolver o problema.
Se a esquerda do século 21 quiser ter potencialidade, não poderá ser mais a esquerda que protagonizou o século 20. Haverá de ser uma “outra esquerda”, à qual importa menos uma perspectiva finalística e mais o enfrentamento das questões concretas da vida da população, tornando-as seus objetivos permanentes.
*Historiador, é professor titular da Unesp
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