- O Globo
Não é mera figura de retórica classificar o dia de ontem no Senado de histórico, não apenas pela importância das matérias aprovadas, mas, sobretudo, pelo que motivou tal aprovação. Se não fosse a pressão da opinião pública, não teria sido aprovada a lei contra o abuso de autoridade na forma em que foi.
E se o Supremo Tribunal Federal (STF) não tivesse colocado em pauta a discussão da restrição do foro privilegiado, entendendo que o tema era de interesse da sociedade, o Senado não teria acatado o projeto de emenda constitucional do senador Álvaro Dias relatado pelo senador Randolfe Rodrigues.
Nunca ficou tão clara a repercussão dentro do Senado da opinião pública quanto na discussão da lei de abuso de autoridade, especialmente porque o senador Roberto Requião, relator da matéria, é sabidamente turrão, que resiste muito a aceitar negociações.
Nesse caso específico, ele estava tão empenhado na aprovação do texto em seus termos que se chegou a uma explicação infantil sobre seu recuo: alegaram aliados que o senador fora vitorioso, pois somente foram retirados alguns “bodes” que colocara no texto justamente com esse objetivo.
Por coincidência, esses “bodes” eram as palavras “necessariamente” e “fundamentado”, que o juiz Sergio Moro considerava que colocavam em risco a atuação da Justiça, ao transformar a interpretação da lei em possível crime. O próprio Requião não recusou os muitos cumprimentos de seus companheiros, que o elogiaram pela capacidade de negociação demonstrada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, horas antes da votação no plenário.
Houve outro ponto fundamental alterado em negociações que entraram noite adentro: o artigo 3º do projeto, que permite a cidadãos comuns processarem membros do Ministério Público. O senador reduziu de 12 para seis meses o prazo para que a ação seja proposta. O relator alterou seu parecer e adotou o mesmo texto do Código de Processo Penal (CPP).
Dessa maneira, quando o Ministério Público não tomar providência, a parte que se considere injustiçada tem seis meses para entrar com ação privada. Os procuradores de Curitiba divulgaram vídeos criticando justamente esses dois pontos, e irritaram bastante Requião, que acabou tendo de aceitar as mudanças.
Outra decisão histórica de ontem foi a aprovação do fim do foro privilegiado para todos os 35 mil cargos que hoje o detém, mantendo-se apenas o foro especial para os presidentes dos poderes: presidente da República, presidentes da Câmara e do Senado e presidente do Supremo Tribunal Federal.
A decisão, aparentemente insólita, tem uma razão específica: o Supremo Tribunal Federal decidiu colocar em votação na pauta de maio a proposta do ministro Luís Roberto Barroso que restringe o foro privilegiado dos parlamentares a crimes ocorridos durante o mandato.
Os senadores entenderam então que se deixassem a decisão para o Judiciário, somente os parlamentares perderiam o privilégio, e resolveram legislar com repercussão geral para todos os que estão beneficiados pelo foro especial hoje.
Como se trata de uma mudança constitucional, a matéria terá que ser votada mais uma vez pelo Senado e depois outras duas na Câmara. Não há certeza, no entanto, de que terá esse apoio entre os deputados, e é possível que a discussão do tema seja prolongada apenas para impedir que o Supremo trate do assunto.
Com a decisão do Senado de ontem, é provável que o STF retire de pauta a discussão do tema, aguardando uma decisão final do Congresso. Se for essa a intenção, estarão ganhando tempo, mas não resolverão o problema, pois se ficar claro que há apenas uma tentativa de protelar a discussão do foro privilegiado, o STF poderá retomar a análise do tema.
Por enquanto, é uma boa notícia que o Senado tenha tomado, no mesmo dia, duas importantes decisões, que vão ao encontro dos reclamos da sociedade. E, se entrar em vigor a decisão de ontem, todos os deputados e senadores, além de outras autoridades, perderão o foro privilegiado imediatamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário