sexta-feira, 16 de junho de 2017

MP&BC | Míriam Leitão

- O Globo

Há um conflito em andamento que pode ser resolvido no diálogo. O Banco Central atravessou o espaço e foi conversar com o Ministério Público, e o entendimento dos dois será para o bem geral. O BC tem que zelar pela estabilidade monetária e financeira, o MP tem feito o árduo trabalho de combater a corrupção no Brasil, e, com razão, teme conspiração contra os seus esforços.

Depois de tantas revelações de gravações em que os donos do poder no Brasil tramavam para “estancar a sangria”, é natural que o Ministério Público se preocupe com o objetivo oculto de cada iniciativa do governo. A Medida Provisória que dá poderes ao Banco Central para fechar acordo de leniência chega exatamente agora quando aumentam os rumores de delação dos suspeitos de saberem crimes dos bancos, os ex-ministros Guido e Palocci. Será a Medida Provisória uma forma de dar ao Banco Central poderes próprios dos procuradores? O BC diz que não, o MP suspeita que sim.

Essa proposta está sendo preparada no Banco Central desde 2012. Começou pela necessidade de adotar no Brasil os termos de um acordo internacional de 2010, para aumentar as punições sobre o sistema bancário. O marco legal brasileiro é de 1964, quando foi criado o Banco Central e a pena pecuniária máxima é de R$ 250 mil. Passaria agora para R$ 2 bilhões ou 0,5% dos ativos do banco. Mas apenas, diz o BC, para as infrações administrativas. A parte criminal é e sempre será do Ministério Público.

Os procuradores temem, como este jornal explicou ontem na reportagem de Gabriela Valente, que o MP possa ser impedido de apurar crimes investigados pelo BC porque estabelece que em caso de risco sistêmico a apuração seja sigilosa.

Uma investigação no sistema bancário é muitas vezes delicada porque qualquer informação antes da hora precipitaria uma corrida bancária contra aquela instituição. A interligação entre os bancos, através do interbancário, pode provocar quebras sequenciais. Os bancos vivem da confiança coletiva dos seus clientes, do contrário, como mesmo as pessoas entregariam suas economias às instituições? A corrida bancária é um fenômeno que se espalha por contágio em questão de horas, desmontando o edifício do sistema financeiro, com efeitos devastadores sobre a economia de qualquer país.

De que forma usar esse sigilo? Como, quando e de que forma compartilhar as informações? Tudo isso é importante para a garantia da própria sociedade e não apenas do Ministério Público. Nos últimos 20 anos ocorreram quebras de bancos e em alguns casos houve crimes que o Ministério Público investigou, como nos casos do Nacional e do Panamericano. O Banco Central tem muito a fazer na fiscalização e na punição ao mercado financeiro em algumas irregularidades. Essa é uma de suas funções, não pode abrir mão dela, nem extrapolá-la.

O Banco Central é uma instituição que não tem autonomia pela lei, mas tem de fato, e sabe que permanecerá na sua missão, independentemente do que aconteça com o governo Temer, que é circunstancial e de curta duração. O BC não armaria uma MP feita sob medida para surrupiar do Ministério Público as suas atribuições de atuar em casos criminais.

O melhor caminho é mesmo o canal de diálogo que o Banco Central diz que abriu com o Ministério Público, para assim corrigir quaisquer pontos que possam ter uma interpretação e utilização inadequadas. Os procuradores sabem que assombração tem aparecido para eles e é natural que desconfiem, mas deveriam evitar a tendência de achar que só eles podem fiscalizar ou investigar em todas as áreas, todos os crimes. O BC tem seu papel tradicional, e aperfeiçoar um marco legal punitivo de 1964 faz todo o sentido.

Hoje uma das grandes assombrações que rondam o trabalho do MP não é o BC, mas o acordo de delação com Joesley Batista. Ao conceder o perdão judicial prévio a quem confessadamente praticou o crime de corrupção em escala continental, o acordo enfraquece a confiança na luta contra a impunidade. Sobre esse nó o MP precisa se debruçar porque nele há o risco potencial de moral hazard, o dano moral, ou seja, que a sociedade passe a achar que em vez do princípio do erga omnes valha a máxima orwelliana de que todos são iguais perante a lei, mas existem alguns mais iguais do que os outros.

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