Correio Braziliense
O pacote anunciado indica que há esforço para
construir no país um ambiente de racionalidade fiscal
A temática fiscal predomina no debate
econômico do país há mais de uma década. O pacote anunciado no último dia 28
prevê uma economia de R$ 70 bilhões entre os exercícios de 2024 e 25. Se esse
impacto for de fato realista, há a possibilidade de se zerar o déficit primário
no próximo exercício fiscal, preservando os parâmetros do Arcabouço (NAF).
É importante salientar que o pacote anunciado, caso efetivo, não estabiliza a relação dívida/PIB, de forma que novos pacotes deverão estar no radar da política econômica nos próximos anos. Entretanto, é igualmente importante ressaltar que o seu objetivo não é estabilizar o endividamento público, mas, sim, preservar os parâmetros do NAF. Desde a sua concepção, já se sabia que o NAF não seria capaz, na ausência de reformas adicionais, de estabilizar a relação dívida/PIB.
Na verdade, tem-se aprendido muito em matéria
de estabilização de dívidas soberanas, de forma que hoje é consensual na
literatura que mudanças na sua inclinação não dependem apenas do que se passa
no front fiscal da política econômica. O crescimento do PIB exerce um papel
importante na dinâmica do endividamento público, tal como o que se passa no
lado monetário (nesse aspecto, a dinâmica da ponta longa da taxa de juros é
essencial para que tal estabilização ocorra). Em outras palavras, a dinâmica do
endividamento soberano requer esforços para além da política fiscal.
Reconhecer que a política fiscal não é
suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB não significa dizer que ela
não seja necessária. Nesse sentido, temos o fatídico pacote fiscal que, apesar
de não estabilizar a relação dívida/PIB, tenta administrar seu crescimento para
que ela não assuma uma dinâmica explosiva a partir da preservação dos
parâmetros do NAF. Se ele será bem-sucedido em impedir uma aceleração explosiva
do endividamento público, não se pode afirmar a priori, particularmente creio
que medidas adicionais deverão ser anunciadas num futuro próximo.
No entanto, convém dizer que esse pacote
trouxe novidades bastante interessantes do ponto de vista da concepção de um
ajuste fiscal ideal. Ajustes fiscais não são um fim, mas um meio, e, ao longo
da última década, quando esse debate esteve na ordem do dia, muito se discutiu
sobre a estabilização da relação dívida/PIB, porém pouco se avançou no debate
de como alcançá-la. Em países grandes e heterogêneos, como o Brasil, há
inúmeras formas pelas quais um ajuste fiscal é estabelecido. Eles podem
acontecer pelo lado do gasto, dos impostos, ou por uma combinação de ambos.
Meu conhecimento sobre o tema diz que planos
de austeridade empreendidos exclusivamente pelo lado das receitas são
inefetivos para estabilizar a relação dívida/PIB. Já planos executados
exclusivamente pelo lado dos gastos são efetivos, porém à custa de um elevado
sacrifício social que pode ter sérias repercussões políticas. De forma que o
ideal é realmente empreender uma política que concilie ambos os lados.
Outra discussão que o anúncio desse pacote
escancarou foi de economia política. Até então, planos fiscais eram
apresentados e aprovados sem uma discussão mais aprofundada sobre em quem eles
recairiam. Isso permitiu anos de congelamento real do salário-mínimo (SM)
coexistindo com expansões significativas de renúncias fiscais para setores
econômicos. Congelar salários e transferir recursos para empresas é a forma não
recomendada de empreender um ajuste fiscal.
Na transição de governos, foi prometida a
expansão real do SM, o pacote agora anunciado prevê que esses ganhos reais
ocorram dentro dos parâmetros da regra fiscal vigente. Isso é bastante
razoável. O mesmo está se passando com as polêmicas emendas parlamentares. Há,
portanto, um esforço de construir no país um ambiente de racionalidade fiscal.
O ponto mais polêmico desse pacote, no
entanto, foi a desoneração do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para
pessoas com renda inferior a R$ 5 mil (o equivalente a 3,5 SMs). É difícil
saber ex ante qual o real impacto fiscal dessa medida; o governo fala em R$ 35
bilhões em renúncias de receitas; agentes do mercado falam em R$ 50 bilhões. O
provável é que o impacto seja um meio termo disso. Pela Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), tal subsídio deve ser compensado com outra fonte de financiamento
orçamentária, o governo prevê a criação de um imposto para faixas de renda
superiores a R$ 50 mil (ou 35 SMs).
Tal anúncio, prometido na campanha eleitoral,
gerou reações em preços financeiros. Essas reações foram, a meu juízo,
desproporcionais. O debate está focado exclusivamente nos seus aspectos de
curto prazo — isto é, seu impacto no orçamento imediato e se a criação do
imposto para os "super-ricos" seria suficiente para compensar esse
impacto. Há, com isso, uma externalidade de longo prazo sendo negligenciada.
Famílias cuja renda é inferior a 3,5 SMs têm
elevada propensão a consumir. Desonerá-las irá elevar sua renda permanente (no
sentido de Friedman) e elevar seu consumo de forma perene. Isso tem efeitos
expansionistas significativos, similares aos de um programa de transferência de
renda. Ao passo que famílias cuja renda é maior que 35 SMs têm uma elevada
propensão a poupar e não mudam seus padrões de consumo no curto prazo pela
incidência de um imposto. Essa mudança qualitativa no padrão de consumo das famílias
de baixa renda é uma ótima notícia do ponto de vista do crescimento econômico,
e esses efeitos deverão transbordar para o longo prazo.
*Professor de macroeconomia no Instituto de
Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia
(IERI-UFU)
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