sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Ameaça com cara de blefe - Ricardo Della Coletta

Folha de S. Paulo

Saída do Mercosul traria mais prejuízos que benefícios à Argentina

A ameaça de Javier Milei de abandonar Mercosul caso o bloco não permita uma negociação de livre-comércio com os Estados Unidos de Donald Trump tem cara de blefe.

Primeiro, a premissa é estranha. As primeiras medidas que Trump tomou sobre o tema podem ser classificadas de vários nomes, menos de livre-comércio. O que levaria Trump a tratar produtos argentinos que queiram acessar os EUA com mais benevolência do que os de outros países, além da admiração ideológica?

O timing da fala de Milei tampouco ajuda a convencer. Quando Jair Bolsonaro e Paulo Guedes quiseram pular fora do Mercosul, em 2019, o bloco era acusado de imobilismo e de estar fechado para as cadeias globais. Não eram poucos os que concordavam.

O argumento perdeu força. O Mercosul fechou recentemente um amplo tratado com a União Europeia. Fez um acordo com Singapura e está negociando com o Efta (Associação Europeia de Livre Comércio) e os Emirados Árabes. Milei aceitaria abrir mão do pacto com a UE?

Se estiver falando sério, o argentino ainda terá que comprar uma briga com a indústria de seu país, cujos produtos manufaturados entram no importante mercado brasileiro com tratamento preferencial. É fácil antecipar que, no congresso em Buenos Aires, esses interesses se fariam ouvir.

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Por último, há um sem-número de acordos e decisões tomados desde 1991 que têm como guarda-chuva o Mercosul. Para citar alguns: circulação facilitada de pessoas entre os países; regras simplificadas para estudos e reconhecimento de títulos universitários; cooperação consular; normas específicas para recebimento de aposentadorias.

Sair do Mercosul colocaria a Argentina num caos jurídico em que cada um desses acordos precisaria ser negociado novamente (e de forma bilateral) caso Buenos Aires queira preservar direitos dos argentinos que visitam ou residam no Brasil, Paraguai ou Uruguai.

Dito isso, Milei é um líder imprevisível e pode muito bem ignorar qualquer consequência por fidelidade a Trump. Mas a complexidade de uma versão argentina do Brexit é tamanha que, ao menos no momento, só vendo para crer.

 

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