Folha de S. Paulo
Força dos EUA reside na capacidade de atrair
e fixar imigrantes, para o que o "jus soli" é importante
É péssima a ideia de Donald Trump de
tentar acabar
com a concessão automática de cidadania norte-americana a filhos
de imigrantes ilegais
ou que não tenham um "green card". A força dos EUA está justamente em
sua capacidade de atrair e fixar imigrantes.
Olhemos para a ciência. Dos 319 americanos que receberam prêmios Nobel em física, química ou medicina entre 1901 e 2023, 36% haviam nascido em outro país, isto é, eram imigrantes. O número vai a 40% se considerarmos as láureas científicas de 2000 até 2023.
A persistir nessa rota, Trump conseguirá
fazer de novo da América uma obscura província. Seu malfadado decreto de
cidadania tem ao menos o mérito de reavivar uma discussão intelectualmente
estimulante. O que transforma grupos de pessoas em nações?
Esse debate e suas implicações legais, o
"jus soli" (cidadania por lugar de nascimento) contra o "jus
sanguinis" (cidadania por ascendência), teve seu apogeu no século 19. A
visão então preponderante era a de autores românticos como Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814), para quem o que forjava uma nação era o
passado em comum, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua.
Desnecessário enfatizar quão perigoso pode ser esse tipo de narrativa, que, em
suas piores manifestações, justifica invasões como a dos Sudetos pelos nazistas
em 1938 e agora a da Ucrânia pelos russos.
O hoje meio esquecido filósofo francês Ernest Renan (1823-92)
veio com uma ideia diferente. No texto "O Que É uma Nação", de 1882,
Renan, sem negar a necessidade de uma história partilhada nem rejeitar a noção
de hierarquias raciais (no século 19 quase todo mundo era racista), introduz a
noção de futuro comum.
Para ele, o que definia um povo era a vontade
das pessoas de construir juntas. A existência de uma nação, dizia, era um
"plebiscito diário" e envolvia "ter feito coisas grandes em
conjunto e querer fazer ainda mais".
O problema da polarização afetiva, que Trump
tanto estimula em suas falas, é que ela mata não apenas essa vontade de
construir junto mas a própria disposição para conviver lado a lado.
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