sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Decreto de cidadania de Trump é tiro no pé - Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Força dos EUA reside na capacidade de atrair e fixar imigrantes, para o que o "jus soli" é importante

É péssima a ideia de Donald Trump de tentar acabar com a concessão automática de cidadania norte-americana a filhos de imigrantes ilegais ou que não tenham um "green card". A força dos EUA está justamente em sua capacidade de atrair e fixar imigrantes.

Olhemos para a ciência. Dos 319 americanos que receberam prêmios Nobel em física, química ou medicina entre 1901 e 2023, 36% haviam nascido em outro país, isto é, eram imigrantes. O número vai a 40% se considerarmos as láureas científicas de 2000 até 2023.

A persistir nessa rota, Trump conseguirá fazer de novo da América uma obscura província. Seu malfadado decreto de cidadania tem ao menos o mérito de reavivar uma discussão intelectualmente estimulante. O que transforma grupos de pessoas em nações?

Esse debate e suas implicações legais, o "jus soli" (cidadania por lugar de nascimento) contra o "jus sanguinis" (cidadania por ascendência), teve seu apogeu no século 19. A visão então preponderante era a de autores românticos como Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), para quem o que forjava uma nação era o passado em comum, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua. Desnecessário enfatizar quão perigoso pode ser esse tipo de narrativa, que, em suas piores manifestações, justifica invasões como a dos Sudetos pelos nazistas em 1938 e agora a da Ucrânia pelos russos.

O hoje meio esquecido filósofo francês Ernest Renan (1823-92) veio com uma ideia diferente. No texto "O Que É uma Nação", de 1882, Renan, sem negar a necessidade de uma história partilhada nem rejeitar a noção de hierarquias raciais (no século 19 quase todo mundo era racista), introduz a noção de futuro comum.

Para ele, o que definia um povo era a vontade das pessoas de construir juntas. A existência de uma nação, dizia, era um "plebiscito diário" e envolvia "ter feito coisas grandes em conjunto e querer fazer ainda mais".

O problema da polarização afetiva, que Trump tanto estimula em suas falas, é que ela mata não apenas essa vontade de construir junto mas a própria disposição para conviver lado a lado.

 

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