Valor Econômico
Quem hoje se define como conservador no
Brasil tende a ser um reacionário, alguém que não compreende as mudanças
sociais, culturais e políticas e que as teme
Para situar a confusão ideológica que
caracteriza a visão que da sociedade atual e de si mesmos têm os que se
comportam como identificados com o olavo-bolsonarismo e com a extrema direita
que nele se expressa, é necessário fazer uma arqueologia das palavras por meio
das quais seus atores se definem.
A confusão é grande. O seu palavreado
ideológico é pseudoconceitual, porque expressa uma consciência social tosca,
fragmentária e de colagens que reúne palavras da linguagem de mera
sobrevivência dos que dela carecem.
Mesmo quando aparentemente remetem a orientações doutrinárias conhecidas, são delas descoladas porque nossa realidade social de agitadores ideológicos direitistas, de uma classe média difusa e confusa, não tem consistência política. Só o risco do caos. O conceitualismo da atual direita brasileira é indício de uma esquizofrenia ideológica manipulada, de uma sociedade doente.
Com a lenta e teimosa ascensão política de
Bolsonaro e de seus coadjuvantes civis e militares, seus seguidores e
simpatizantes sentiram-se cada vez mais à vontade para se autodefinirem por
meio de atributos supostamente conceituais. Até então ninguém dizia que era “de
direita”. Na verdade, nem “de esquerda”. Porque são categorias definidoras de
classificação exterior e arbitrária das aparentemente ideológicas orientações
dos de um desses modos definidos.
Foi com surpresa que, depois de algumas
décadas sem encontrá-lo, porque me mudara de cidade, encontrei-me com velho
conhecido, evangélico, que me disse, ao longo da conversa ocasional, ter
finalmente compreendido que era de direita.
Num país de gente privada de identidade
política desde sempre, o bolsonarismo compreendeu que havia em nossa
mentalidade atrasada um vazio a ser ocupado. Dera-lhe um nome e um conteúdo o
nome derivado do de uma pessoa que representa a frustração desse vazio. No modo
de ver do meu velho conhecido, ele percebera que tinha uma identidade política.
Não é casual que o mito dessa referência ideológica tenha uma biografia de
fracassos e erros, mesmo na curta carreira militar.
A estabilidade mais ou menos rígida do
bolsonarismo nas pesquisas de opinião eleitoral é um indício significativo
dessa anomalia identitária de fundo meramente nominal.
Não é, pois, casual que a disseminação da
mania de vestir símbolos nacionais como a nossa bandeira e suas cores
simbólicas, expresse a servidão ideológica própria do extremismo de direita e
da negação do que é propriamente política: razão e liberdade, e não emoção e
sujeição.
Aqui e ali, ouvi afirmações de gente de
classe média de que eram liberais, e por isso bolsonaristas, porque as
esquerdas seriam adversárias da liberdade de pensamento, mesmo de quem não
pensa. Sentem-se tolhidos, sobretudo no risco não confirmado, de que governos
de esquerda são de esquerda porque cerceiam o cidadão no direito de pensar e
decidir com base em seus próprios valores e interesses. Ainda que antissociais
e que contrariem o bem comum. Atribuem às esquerdas o que é próprio da direita.
Sequer percebem que no mundo moderno as
esquerdas são uma pluralidade de concepções a respeito da democracia, baseada
no direito à diferença e à pluralidade de modos de pensar e de viver. Essa é a
esquerda do século XXI.
Nem sempre governos e partidos que se dizem
de esquerda o são propriamente. O stalinismo, na URSS, teve sua face fascista
na autodefesa autoritária contra a invasão alemã e nazista. Disso nos fala
Lukács, sua vítima, em famosa carta.
De uma mulher evangélica, ouvi que era
conservadora porque contra as mudanças nos costumes, “coisa das esquerdas”, e
era liberal porque tinha o direito de recusar-se a seguir orientações que
contrariam suas concepções de costume, como a vacinação contra covid.
Curiosamente, uma orientação autoritária no que negava, interpretada como
liberal.
A uma das interrogadas no processo relativo à
intentona de 8 de janeiro de 2023 o juiz pediu que esclarecesse sua
participação na invasão e depredação dos recintos do poder: “porque sou
conservadora, contra o aborto e o uso da maconha”.
Isso nada tem a ver com a tradição
conservadora. Praticamente, não temos conservadores no Brasil. Temos
reacionários, que não compreendem e temem as mudanças sociais e a modernidade.
Gente que, porque inculta, se protege no falso abrigo de lideranças e ideologias
oportunistas e antidemocráticas. Vítima de uma educação manipuladora que deixou
de lado o pensamento crítico e o aprimoramento da consciência social. Que já
não reavalia continuamente a realidade como um processo contínuo de
ressocialização das pessoas, de reeducação e aperfeiçoamento da personalidade,
autoras de reformas sociais.
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