José Casado – O Globo
• Ela se mostra perdida no labirinto do próprio legado e ele usa a pauta de votações da Câmara como arma
• Cunha organiza uma nova maioria legislativa, a dos adversários de Dilma. A presidente perdeu espaço para desfazer a trama em que enredou a economia
A crise cultivada nesta temporada de seca em Brasília tem nome, Dilma, e sobrenome, Cunha.
Ela completou sete meses no Palácio do Planalto perdida no labirinto do próprio legado, construído em parceria com Lula.
Do outro lado da rua, no Congresso, ele escolheu atirar com a arma de maior calibre que um presidente da Câmara dispõe: o controle da pauta de votações.
Atingido por denúncias de “crimes infamantes” — aqueles que desonram, rebaixam, aviltam e causam repulsa, segundo os manuais de Direito —, o deputado fluminense mostrou-se acuado. E apostou no confronto institucional como método para ofuscar seu protagonismo nas investigações sobre corrupção na Petrobras.
Cunha passou a liderar a organização de uma nova maioria legislativa, a dos adversários de Dilma. Até agora, a alquimia parlamentar permitiulhe catalisar sentimentos antigoverno em todos os partidos, inclusive no PT de Lula e Dilma.
Foi assim que numa simbólica votação, quartafeira, surpreendeu a presidente. Ela ficou com apenas 16 dos 400 votos governistas na Câmara.
O governo perdeu a bússola do Legislativo. No plenário na Câmara estavam 59 deputados petistas. Desses, 56 votaram contra Dilma. Somaramse ocasionalmente à oposição dispersa, cuja melhor proposta se resume à convocação de "novas eleições" — como pregam os líderes do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio, e no Senado, Cássio Cunha Lima, alinhados ao senador Aécio Neves.
Essa exortação às eleições presidenciais antecipadas pode até ser útil para incentivar protestos, como os previstos para o próximo domingo. No entanto, soa delirante num país cuja Constituição impõe o regime presidencialista, com mandato de quatro anos e só passível de interrupção por morte, renúncia ou impeachment. Se o governante exerce as funções, a Carta reserva aos descontentes a alternativa de uma longa, tortuosa e imprevisível rota processual para o impeachment, na qual o Congresso submete-se ao império do Supremo.
Dilma e Cunha escolheram se confrontar em campo minado.
O governo tem sido reprovado por sete em cada dez eleitores, nas pesquisas, porque ela prometeu na campanha, faz o contrário no Planalto e, diante das consequências, refugia-se no imobilismo.
Quando decide se mover, produz lances de nonsense, como o elogio à mandioca ou a autorização ao vice, Michel Temer, para clamar em público por "alguém" com "capacidade" de pacificar a política e recuperar a economia.
A mensagem atrapalhada foi decodificada no Congresso de duas formas. Na versão benigna, o vice começou a dança de despedida da coordenação política. Na outra, exibiu-se com o compasso e o esquadro do moderado constitucionalista de 74 anos de idade, com meio século de parlamento, três vezes presidente da Câmara e segundo na linha sucessória republicana.
Desmentidos, na quinta e sexta-feira, só contribuíram para realçar o óbvio. Ou seja, a presidente perdeu a liderança no Legislativo. Em consequência, encurtou a margem de manobra para desfazer a trama em que ajudou a enredar a economia.
Dilma criou uma situação inédita. Em todas as crises recentes, o fator externo foi preponderante. Agora, ele está neutralizado por reservas razoáveis (mais de US$ 300 bilhões). Porém, o desarranjo nas contas públicas domésticas aumentou a inflação e o desemprego industrial.
A desordem resulta de uma década de gastos acima da receita, e com pagamentos adiados. As despesas realizadas e não pagas cresceram 45% no primeiro governo Dilma. Somam R$ 227 bilhões — seis vezes mais que a poupança governamental prevista em 2015 para pagar os juros da dívida pública (o chamado superávit primário).
Nas capitais e cidades médias, onde está a maior parte do eleitorado, prevalece a percepção da escalada inflacionária e do desemprego industrial. As demissões nas fábricas traduzem a decadência da indústria brasileira, a despeito do samba-exaltação governamental sobre sua regeneração na década que passou. Ela fica mais visível quando se observa a participação do setor na composição do Produto Interno Bruto (conjunto dos bens e serviços produzidos no país).
A fatia da indústria no PIB encolheu para pouco mais de 12%, conforme dados da Federação das Indústrias de São Paulo. Significa, proporcionalmente, retrocesso ao estágio de desenvolvimento que o Brasil possuía há 60 anos, quando o governo Juscelino Kubitschek lançou um plano para industrialização do Sudeste. Na década anterior a JK, quando o país era essencialmente rural, a embrionária indústria já contribuía com 11,3% do PIB.
Entre Lula e Dilma ( 2004 a 2012), a participação do setor industrial no PIB caiu 30,8%, diz a Fiesp: "Se o cenário não se alterar, em 2029 a indústria vai representar apenas 9,3% do PIB."
Foi sobre esse terreno instável que o deputado Cunha escolheu assentar baterias contra o governo, acelerando votações de contas, de pedidos de impeachment e de aumentos de gastos.
Ele culpa Dilma por suas agruras no inquérito sobre corrupção na Petrobras, tanto quanto se diz perseguido pelo procurador Rodrigo Janot e pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba.
Queixou-se do juiz ao Supremo, mês passado, porque foi citado por Júlio Camargo, agente de subornos a políticos. Depondo em Curitiba, Camargo disse que deu uma propina de US$ 5 milhões ao deputado Cunha para garantir a contratação de dois navios-sonda pela Petrobras.
O juiz respondeu, segunda-feira: "A mera referência ao nome do titular do foro (em Brasília) não o torna acusado do processo (em Curitiba)." Complementou: "Aliás, o acusado Júlio Camargo declarou que, previamente à audiência (em Curitiba), teria prestado depoimento (em Brasília) relatando em detalhes o envolvimento do deputado".
O destino de Cunha começa a ser definido nos próximos dias quando a Procuradoria Geral decide se vai denunciá-lo. Havendo denúncia, o Supremo julga se abre processo. Se processado, o presidente da Câmara estará prisioneiro de duas batalhas simultâneas: uma contra a presidente, outra pela própria sobrevivência na política.
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